segunda-feira, 30 de maio de 2016

Famílias nada tradicionais


Os romanos não tinham um termo específico para designar o que chamamos “família”. A palavra familia englobava todos aqueles que viviam sob a autoridade do pater familias, crianças e adultos, homens e mulheres, livres e escravos. Empregavam também a palavra domus (casa) que representava todos que moravam em uma mesma habitação.Em Roma existiam três estruturas distintas: a família nuclear, a tríade pai-mãe-filho; a família ampliada – várias gerações que coabitavam sob a autoridade do patriarca; e finalmente a família múltipla, que congregava pessoas e outras famílias nucleares unidas por contratos de casamento.

Nas classes médias e populares as famílias eram muito mais estáveis do que na aristocracia. Nas inscrições funerárias há elogios freqüentes às mulheres que viveram em paz com seus maridos durante 20, 30, até 60 anos. Mas também existiram famílias reconstituídas. A morte de um dos cônjuges levava o sobrevivente a assumir uma nova união. Alguns documentos mencionam mulheres que foram casadas várias vezes.
Já nas classes dominantes, o casamento era equivalente a um acordo político. Não significava uma aliança afetiva, mas obedecia, na maior parte das vezes, às flutuações táticas das forças atuantes. Muitos dos homens (e das mulheres) influentes de Roma tiveram várias uniões. Sylla, Pompeu e Antônio esposaram cada um cinco mulheres; os imperadores Calígula e Cláudio se casaram cada um quatro vezes. Entre as mulheres, o recorde parece pertencer a Vistilia, mãe do grande general da época de Nero, Corbulão: ela teve sete filhos de sete maridos em um período de 20 anos.A mulher podia pedir o divórcio sem ter de se justificar. O divórcio tornou-se uma prática tão banal na alta sociedade romana que Sêneca estigmatizou suas concidadãs: “Elas se casam para se divorciarem, e se divorciam para se casarem”. Messalina aproveitou a ausência do marido, o imperador Cláudio, para se declarar divorciada e celebrar seu casamento com o amante Silius.


Algumas vezes essas uniões firmadas em uma contingência política provocaram situações escabrosas. Pompeu esposou em terceiro matrimônio a nora de Sylla, Aemilia, que estava grávida de seu primeiro marido, Acilius Glabrio. Mas isso não impediu que ela se instalasse na casa de seu novo marido. Pouco depois, morreu ao dar à luz um menino, que foi imediatamente transferido para a casa de seu pai natural. Augusto, cuja mulher Escribônia estava grávida, apaixonou-se loucamente por Lívia, que também estava grávida, e era casada com Nero. Augusto esperou que Escribônia desse à luz sua filha Júlia para repudiá-la no próprio dia de seu parto. Em seguida, casou-se com Lívia que deu à luz em sua casa.Desde o fim da República, a antiga fórmula de casamento que submetia a esposa ao marido caíra em desuso. A mulher casada continuava legalmente independente, até mesmo no campo financeiro. O dote, que consistia em moedas, jóias, prataria, mobiliário, terras e escravos, era confiado ao marido, mas somente sua renda podia ser empregada para a vida do casal. Em caso de divórcio ou viuvez, a mulher recuperava integralmente seu dote. Ela também tinha o direito de legar seus bens a quem desejasse. Só quando o adultério era o motivo do divórcio o marido ficava com uma parte do dote.As crianças eram as que mais sofriam com as sucessivas uniões de seus pais. Em caso de divórcio, geralmente elas eram separadas da mãe, ficando sob guarda paterna. As madrastas deviam garantir a educação de seus enteados, muitas vezes tão jovens quanto elas. Os irmãos e irmãs nascidos de um mesmo pai eram educados juntos, mas não mantinham vínculos com os filhos que suas mães tinham de outras uniões.

PIOR PARA AS CRIANÇAS: As crianças órfãs de pai se encontravam em uma situação ainda pior: deveriam ficar com a família paterna ou poderiam se unir à de sua mãe? Com 3 anos, o pequeno Nero perdeu seu pai enquanto sua mãe estava exilada em Roma. Morou com sua tia paterna, Domitia Lépida, que se desinteressou da criança e a confiou a dois escravos, um dançarino e um barbeiro. Quando Agripina retornou do exílio, casou-se com Sallustius Crispus, e em seguida com o imperador Cláudio, trazendo o filho para morar com eles. Mas a sorte de Nero não melhorou: novamente sua educação foi entregue a dois escravos.No entanto, há casos de reagrupamentos familiares mais felizes. A irmã do imperador Augusto, Otávia, cuidou ao mesmo tempo de seus próprios filhos e dos que seu marido Antônio teve de outras uniões. A “família” de Otávia se compunha de três filhos de seu primeiro casamento, de suas duas filhas nascidas de Antônio, dos dois filhos de Antônio e de Fúlvia e dos três filhos de Antônio e Cleópatra.

O concubinato era uma forma de casamento inferior entre uma mulher livre que vivia com um homem sem ser sua esposa. Era proibido ter ao mesmo tempo uma esposa e uma concubina. Mesmo assim, o concubinato era freqüente, sobretudo entre escravas libertas e seus antigos donos. Muitas vezes os homens das classes superiores uniam-se a uma concubina após terem sido casados regularmente uma ou duas vezes. Após a morte da mulher, Faustina, Marco Aurélio foi pressionado pelas grandes famílias romanas para escolher uma nova imperatriz. Mas ele preferiu ter como concubina a filha de um intendente de Faustina, pois não quis, segundo disse, impor uma madrasta a seus filhos – ele tinha 12!Outra forma de união, o contubernium ou “coabitação”, ocorria quando um dos membros era de origem servil. Era, em particular, o caso das uniões entre escravos, que podiam ser tão estáveis quanto os casamentos dos homens livres. Além disso, sempre existiram relações entre o patrão e as mulheres escravas, consentidas ou não. O mesmo acontecia entre mulheres livres e homens escravos.A criança nascida dessas relações não era reconhecida pelo pai. Seguia a condição da mãe: o filho de uma escrava era escravo, de uma mãe livre, era livre. O pai não tinha nenhuma obrigação de alimentá-la e a excluía de sua herança. O único modo de o pai obter o pátrio poder era adotando-a.

O pater familias tinha o direito de modificar a composição da família suprimindo as crianças que não desejava ou adotando um filho para sucedê-lo. Muitas razões, em particular para os pobres, que enfrentavam dificuldades para alimentar muitas bocas, podiam levar o pai a não reconhecer um filho, mesmo legítimo. Isso era praticado em todas as classes sociais e atingia principalmente as filhas. O futuro imperador Cláudio abandonou sua filha Cláudia, pois suspeitava que ela era fruto dos amores adúlteros da mulher com seu escravo liberto Boter. Uma criança abandonada podia ser recolhida para ser adotada. Na maioria das vezes, no entanto, estava destinada à escravidão. Essa prática só foi revogada no século IV.Uma família precisava de um filho homem para receber em herança os bens do pai e garantir a permanência do culto das divindades da casa. Na ausência de filhos, era necessário recorrer à adoção de um rapaz que, na maioria das vezes, já tivesse atingido a idade adulta. O escritor Plínio, o Jovem, era filho adotivo de seu tio materno, Plínio, o Velho. A adoção era também o meio mais seguro para os imperadores garantirem sua sucessão. Alguns meses antes de seu assassinato, Júlio César adotou o neto de sua irmã, Caio Otávio, o futuro imperador Augusto. Tibério, Trajano, Adriano, Antônio, o Piedoso e Marco Aurélio eram filhos adotivos dos príncipes que os precederam. Nos meios mais populares, os homens que não tinham descendentes adotavam, muitas vezes, um de seus escravos libertos.Por múltiplas razões, a família nuclear em Roma estava ameaçada por rupturas e reconstituições constantes. As crianças eram as principais vítimas dessa situação. Felizmente para elas, a estabilidade era garantida por aqueles a quem eram confiadas, as amas e os nutritores (pais babás) que não as deixavam durante todo o período da infância. Eles eram chamados pelas crianças de tata (papai) e mama (mamãe), e muitas vezes esses pais substitutos ficavam toda a vida ao lado de seus antigos protegidos.

O surgimento do cristianismo modificou a concepção romana de família e rompeu com as práticas matrimoniais do mundo pagão. Apoiandose em textos dos Evangelhos (“Que o homem não separe o que Deus uniu”) e das epístolas paulinas (“Que a mulher não se separe de seu marido... e que o homem não repudie sua mulher”), os Pais da Igreja declararam a obrigação da monogamia e a indissolubilidade do casamento, proibindo o divórcio.Durante o primeiro milênio, o casamento permaneceu um assunto no qual a Igreja não intervinha. Foi somente em 1215, quando do concílio de Latrão IV, que o casamento se tornou o sétimo sacramento da Igreja católica e se transformou em um ato público efetuado em uma igreja diante de um religioso.No entanto, com a queda do Império Romano no início do século V, o direito germânico se sobrepôs ao romano e introduziu novas práticas entre as famílias. A poligamia era muito arraigada entre os germânicos: ao lado da esposa legítima, geralmente o homem tinha esposas secundárias, as friedlehe (promessas de paz) e concubinas escravas.
O camafeu mostra a curiosa família de Tibério (2) que, sendo filho de Lívia (3) com Nero, foi adotado por Augusto (1), tornando-se seu sucessor à frente do Estado



Carlos Magno teve cinco esposas legítimas e ao menos quatro concubinas oficiais. Todas essas mulheres lhe deram 17 filhos ou mais. Esse pai tão afetuoso nunca se separou de sua numerosa prole: quando viajava, todos os filhos cavalgavam a seu lado e as filhas seguiam acompanhadas por guardacostas. Carlos Magno amava tanto suas filhas que não conseguia decidir- se a concedê-las em casamento. Desse modo, permitiu que se tornassem friedlehes de amantes que moravam com elas. A mais velha, Rotrude, vivia com Orgon, duque do Maine, com quem teve um filho. No palácio de Aix-la-Chapelle, coabitavam, sob a autoridade de Carlos Magno, várias mulheres e concubinas, filhos legítimos e bastardos, amantes das filhas, netos, sem esquecer sua mãe Berta, que morreu com idade avançada. Todo esse pequeno mundo viveu mais ou menos em harmonia, sem suscitar reprovação pública especial. Podemos nos perguntar como, em uma época em que o cristianismo determinava a indissolubilidade do casamento, as separações eram tão freqüentes. Os divórcios, muitas vezes decididos para que se concluíssem alianças mais vantajosas, eram disfarçados em anulações por esterilidade ou adultério da mulher. Outros casais utilizavam habilmente “o obstáculo proibitivo do parentesco”: o direito germânico proibia o casamento entre pessoas até o sétimo grau de parentesco. Não era muito difícil provar que se tinha uma ligação de parentesco distante com a mulher de que se buscava a separação.As crianças nascidas de uniões paralelas tinham o status de bastardos e eram afastadas da herança paterna, mas viviam com o pai. Essa ilegitimidade não impedia que muitas delas fizessem uma bela carreira. Carlos Magno nasceu quando a mãe, Berta, era apenas a concubina de seu pai Pepino, o Breve. Foi legitimado mais tarde, quando os dois se casaram.Durante a segunda metade do primeiro milênio, enquanto a religião cristã impunha a monogamia e a indissolubilidade do casamento, a poligamia ainda era comum. A partir do século X, essa situação tornou-se pouco a pouco obsoleta. No final do primeiro milênio, de fato, a Igreja ocupou uma posição preponderante na sociedade e impôs seus princípios primeiramente ao povo, depois à nobreza.

Casamento em Roma: direito e dever de todo cidadão


Casar é necessário ou não? Essa alternativa, que pode parecer totalmente banal, não encontra espaço em Roma: somente alguns irredutíveis contestadores (como os poetas Horácio ou Propércio) ousaram questionar a necessidade da união conjugal, uma vez que, para os cidadãos, o casamento era um dever que permitia o nascimento de filhos legítimos que poderiam herdar o patrimônio familiar. O matrimônio era, portanto, imprescindível à manutenção da comunidade social, e não uma união resultante da atração entre dois jovens. Era antes de tudo um acordo feito entre duas famílias.Em Roma, o casamento era um direito cívico reservado aos cidadãos e às filhas dos cidadãos. Os demais moradores das fronteiras do império não tinham a possibilidade de se casar legalmente: eles só podiam contrair uniões qualificadas como concubinagem. Determinadas condições eram necessárias para a formação de um casal legítimo: interdição do incesto (mesmo sendo frequentes as uniões entre primos, sobretudo entre os germânicos), monogamia (no entanto, muitos homens abrigavam em seu domicílio uma concubina, que convivia com a esposa legítima), idade mínima legal (12 anos para as moças; 14 anos para os rapazes), consentimento dos futuros esposos e estabelecimento de um contrato entre as duas famílias.Uma vez que o casamento era considerado indispensável à sobrevivência da sociedade, algumas leis instituídas por Augusto no ano 18 a.C. previam pesadas multas para os solteiros. Além disso, eles não podiam receber herança. E já que a procriação constituía a conclusão lógica do casamento, os homens casados e sem filhos eram também punidos de maneira similar.

MULHERES EMANCIPADAS:Originalmente em Roma, o casamento era qualificado in manu, isto é, a mulher sob a autoridade do marido. Ela se tornava, por assim dizer, a filha deste último. No entanto, desde o século V a.C., o casamento in manu tendeu a desaparecer para dar lugar a uma união sine manu (sem autoridade): a mulher casada não passava mais da autoridade do pai à do marido, o que permitiria uma emancipação feminina em Roma.A esposa dependia apenas de um tutor, escolhido fora de sua família, que podia ser trocado conforme sua vontade. A tutela se tornou uma formalidade que não trazia nenhum embaraço à liberdade da mulher. O casamento não era, então, em Roma, um fator de limitação aos direitos da mulher, uma notável exceção na Antiguidade.A escolha dos cônjuges era importante, já que comprometia o futuro das duas famílias. Eram as considerações sociais que determinavam a decisão dos pais. Na eleição do futuro marido, quatro fatores deviam ser levados em conta, segundo o bispo Isidoro de Sevilha: a família, a coragem, a beleza e a sabedoria. Numa moça, quatro qualidades são apreciadas: a beleza, a família, as riquezas e os bons costumes.

Os “arranjadores de casamentos” apresentavam os candidatos que respondessem a tais critérios. O escritor Plínio, o Jovem. Desempenhou muito frequentemente a função de intermediador para apresentar jovens a seus amigos “para todo tipo de relacionamento”. Evidentemente, nas famílias da aristocracia e da alta burguesia, eram concluídas alianças no seu meio social. Contudo, os “casamentos desiguais” eram, por vezes, ditados pelos interesses. O todo-poderoso chefe do partido popular, Mário, de origem muito humilde, pôde assim esposar Júlia, jovem da família aristocrática dos Césares.Eram geralmente os pais de família que tomavam a decisão de casar os filhos. Mas, em Roma, as mães tinham direito à palavra. Elas não se privavam de impor sua escolha. Como Terência, esposa de Cícero, que elegeu para o terceiro casamento da filha Túlia seu candidato, Dolabela, a despeito das reticências de seu marido. Desnecessário dizer que os futuros casados não eram sequer consultados.Os dois esposos podiam ter uma grande diferença de idade. A filha de César, Júlia, não tinha nem 20 anos quando foi concedida em casamento a Pompeu, que já tinha passado dos 50. Cícero, com 60 anos de idade, desposou em segundas núpcias sua pupila Publília, ainda púbere. Antes do casamento, os esponsais (sponsalia) constituíam uma etapa importante e obrigatória. Podiam ser concluídos quando os futuros casados eram ainda crianças. O futuro imperador Tibério tinha 7 anos quando seus pais decidiram contratar seu casamento com a pequena Vipsânia Agripina, de apenas 1 ano de idade. Se, antes do casamento, uma das duas famílias rompesse seu compromisso, poderia ser processada e obrigada a pagar uma multa.


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A revolução dos Aiatolás

Há 25 anos, os iranianos tomados por um sentimento nacionalista e fortemente religioso, derrubaram o governo pró-Ocidente e levaram ao poder um grupo fundamentalista que alteraria o destino do Oriente Médio

Isabelle Somma | 01/04/2004 00h00
Foi tudo muito rápido. Em janeiro, o último xá do Irã, um playboy com fama de dar as melhores festas do mundo, para qual eram convidados chefes de Estado, astros de Hollywood e pilotos de Fórmula 1, fugiu para o exterior. Em fevereiro, o líder da oposição, um religioso radical voltou do exílio, foi recebido em triunfo e assumiu o poder. Em abril, o país transformou-se, após um plebiscito, em uma república islâmica, adotando como base as leis fundamentadas no Alcorão. Depois disso, a história da região, uma das mais sensíveis em termos geopolíticos do planeta, jamais seria a mesma. A Revolução Islâmica ocorrida em 1979 no Irã levou ao poder um grupo de religiosos fundamentalistas com discursos e práticas antiamericanas e antiocidentais, que influenciou toda a região, acirrou antigas disputas com os vizinhos e gerou algumas das imagens que marcaram os anos 80 e 90. Hoje, 25 anos depois, quando o caldeirão aquecido pelas maiores reservas de petróleo do mundo volta a ferver, alimentado por uma intrincada sucessão política e pela ocupação de dois de seus vizinhos – Iraque e Afeganistão –, os olhos (e a memória) do mundo se voltam para lá.

Mas, até 1979 e durante o século 20, o Irã não havia sido um problema para o Ocidente. Pelo contrário, os governos iranianos haviam, em diferentes graus, cooperado e se aproximado de americanos, alemães, britânicos e russos. No início do século, quando se viviam os últimos anos da dinastia Qajar (1779-1925), os britânicos exploravam a maior parte do petróleo iraniano e o exército czarista (depois soviético), deslocava-se com freqüência (e liberdade) pelo território do país (ainda chamado Pérsia). Enfraquecido, o xá Ahmed, soberano desse rincão pobre e dependente, não resistiu a um golpe de Estado em 1921 e o líder rebelde Reza Kahn foi proclamado xá da Pérsia pelo Majlis (Parlamento).
O novo governante tinha dois objetivos. Um deles era modernizar o país, tomando o Ocidente como modelo. Chegou a proibir que homens usassem turbantes e as mulheres, o véu. Mas também promoveu importantes reformas nos sistemas educacional e judiciário, além de construir hospitais e ferrovias. O mais importante, contudo, era livrar-se da dependência estrangeira. Primeiro, Reza Khan mudou o nome do país de Pérsia, palavra de origem grega, para Irã, como os próprios habitantes o designavam. Depois, tirou das mãos dos estrangeiros tudo o que pôde, como os serviços de telégrafos e a emissão de dinheiro. O que não podia tocar com tecnologia própria, como a aviação comercial, negociou contratos mais vantajosos.
Ao mesmo tempo que tentava se afastar de soviéticos e ingleses, o xá se aproximou dos nazistas alemães, com quem tinha em comum o discurso nacionalista e anti-semita e de quem passou a importar tecnologia. Com a Segunda Guerra Mundial, o Irã foi invadido pelos soviéticos e britânicos e dividido em dois. Reza Khan foi afastado do poder e partiu para o exílio na África do Sul, onde morreu três anos depois. Em seu lugar, com o apoio dos aliados, assumiu seu filho Mohammed Reza (chamado de Reza Pahlevi), de apenas 20 anos.

Na década de 50, a ascensão do primeiro-ministro nacionalista, Muhammad Mossadeq, levou a uma crise sem precedentes, desencadeada, em 1953, quando ele decidiu estatizar as reservas de petróleo que estavam nas mãos dos ingleses. Mossadeq rompeu relações com a Grã-Bretanha, depois de descobrir que eles preparavam um golpe de Estado. O Parlamento apoiou o primeiro-ministro, concedendo-lhe poderes ilimitados. O xá, aliado dos britânicos, tentou demiti-lo, mas perdeu a queda-de-braço e foi obrigado a fugir do país.
Segundo o jornalista americano Stephen Kinzer, autor do recém-lançado All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror (“Todos os Homens do Xá: um Golpe Americano e os Caminhos do Terror no Oriente Médio”, inédito no Brasil), foi nesse momento que os americanos resolveram intervir. “Um influente membro da CIA, Kermit Roosevelt, neto do presidente Franklin Roosevelt, foi enviado ao Irã com ordens para organizar um novo golpe. Ele subornou a imprensa para que trabalhasse contra Mossadeq. Rapidamente, 80% dos jornais do país estavam sob seu controle”, afirma Kinzer. “Membros do Parlamento, líderes religiosos e militares também foram aliciados e o primeiro-ministro foi preso.” O xá retornou ao país, o petróleo voltou às mãos estrangeiras e o Irã teve de pagar indenizações durante dez anos. O episódio marcou o início de um duradouro processo de influência do governo americano no Irã.
Na década de 60, o governo de Reza Pahlevi tornou-se mais ditatorial. Diante das críticas, ele iniciou uma campanha para eliminar seus opositores. Criou uma polícia política, a Savak, que tinha como método corriqueiro de interrogatório a tortura. Um dos descontentes era um proeminente acadêmico xiita, conhecido como aiatolá Ruhollah Khomeini. Filho de um antigo preso político do tempo de Reza Khan, Khomeini foi duas vezes para a cadeia naquela época. Na primeira, depois de criticar publicamente um acordo em que os americanos se encarregariam de reformar o exército iraniano. Na segunda, acabou expulso do país e instalou-se por algum tempo no Iraque.
Enquanto o xá levava uma vida de playboy com fama internacional, o país sofria com uma grave crise econômica. A classe média, que havia sido beneficiada durante o governo de seu pai, ressentia-se de sua falta de participação política e da proximidade do governo com os Estados Unidos. O aumento da repressão na década de 70 reforçou a oposição ao governo, unindo comunistas e radicais religiosos.
O pontapé inicial da revolução foi uma manifestação pró-Khomeini realizada em janeiro de 1978 na cidade de Qum, um popular centro religioso. Tropas do xá reprimiram o protesto, matando 70 pessoas. Do exílio, Khomeini ordenou que após 40 dias fossem realizadas cerimônias em memória dos mortos, como é tradição no país. Esses eventos, que passaram a se repetir a cada quarentena, se transformaram em protestos contra o governo e o Ocidente. O xá pediu para que o Iraque, do então aliado Saddam Hussein, expulsasse Khomeini, que foi parar na França. O governo impôs a lei marcial, o que só piorou as coisas. Seguiu-se uma greve geral que paralisou a economia do Irã.
Em janeiro, Reza Pahlevi fugiu do país e duas semanas depois, Khomeini voltou a Teerã, após 14 anos de exílio. Ele indicou o líder do moderado Movimento de Libertação, Mehdi Barzagan, para formar o novo governo. Em seguida, o povo foi às urnas e decidiu, em plebiscito, o novo sistema de governo: uma República Islâmica.
Para Hamid Dabashi, especialista em islamismo da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, o resultado era esperado. “Desde o início do século 19, com a influência das conquistas coloniais e manobras de britânicos, franceses e russos pelo mundo todo, os povos dominados resistiram seja com nacionalismo anticolonialista, em conjunto com socialismo ou formas variadas de teologias de libertação. Na América Latina, por exemplo, isso ocorreu sob inspiração de ideais cristãos. O mesmo vale para o Islã, que vem sistematicamente se transformando de uma religião medieval para uma idéia singular de resistência contra o colonialismo.”
O país que surgiu desse movimento contra o imperialismo, no entanto, não teve vida fácil. O seqüestro da embaixada americana (leia quadro na página 37) e a guerra contra o Iraque (1980-1988), na qual morreram 200 mil iranianos, colaboraram para manter a instabilidade. E o apoio (até mesmo financeiro) às milícias xiitas no Líbano durante a guerra civil (1975-1990) provocou o isolamento do Irã perante a comunidade internacional.
Os primeiros anos do novo governo xiita foram de turbulência interna. Partidos radicais tentaram assumir o controle do país. Mais de 7 mil militantes da oposição foram assassinados, e seitas consideradas heréticas, como a Bahai, proibidas. Durante os anos da guerra, a economia manteve-se estagnada. Após o cessar-fogo com o Iraque, em 1988, e a morte de Khomeini, no ano seguinte, o país retomou as exportações.
Em 1997, os iranianos mostraram sua insatisfação com os rumos que a revolução vinha seguindo e elegerem um aiatolá reformista, Mohammad Khatami. Mas o momento atual ainda não sugere estabilidade. Para Kinzer, a revolução pode servir de exemplo para os atuais insatisfeitos. “Ela ensina aos iranianos uma amarga, mas muito importante lição. É melhor pressionar por reformas com seja lá quais estruturas existirem que começar a engrenagem de uma revolução sem saber onde é que ela vai parar.”

Dez nomes fundamentais para a História do Brasil

As pessoas que fizeram o país em que vivemos hoje, de acordo com a escolha do público e de especialistas

A História é feita de pessoas. Faz toda a diferença, por exemplo, que tenha sido o ambicioso e ideologicamente flexível Getúlio Vargas a tornar-se presidente provisório na Revolução de 1930 – e não um dos tenentes radicais que o cercavam. O país também não seria o mesmo sem as qualidades pessoais do intelectualizado e tolerante dom Pedro II, que estabeleceu um exemplo de liberdade para as gerações seguintes. E o próprio Pedro não seria quem era sem seu primeiro tutor, o cientista-filósofo José Bonifácio de Andrada e Silva. Esses grandes brasileiros não apenas tiveram a chance de decidir o futuro do país, como encarnam o espírito e as contradições de sua época.
AVENTURAS NA HISTÓRIA pediu a especialistas que indicassem os personagens mais importantes do país, em paralelo com uma pesquisa entre os leitores, com participação de 4 454 votantes. Os dez favoritos dos leitores contam como um voto a mais, e os empates são ordenados pela preferência do público. O resultado revelou algumas surpresas: Joaquim Nabuco e José Bonifácio, ignorados pelos leitores, foram, de acordo com os especialistas, mais importantes que Juscelino Kubitschek. JK, por seu lado, surpreendentemente, superou Getúlio Vargas na memória popular, atingindo o maior número de votos. Quase um em cada dois leitores apontou o criador de Brasília como o maior brasileiro de todos os tempos.
Como qualquer lista, esta tem dolorosas omissões. Figuras importantíssimas, como Rui Barbosa, dom João VI e Sérgio Buarque de Holanda ficaram de fora por um voto. A Princesa Isabel, que figuraria como a única mulher da lista, foi uma das preferidas do público, mas não teve voto entre os especialistas. Nem o primeiro herói brasileiro, Tiradentes, figurou entre os mais votados.
OS VOTOS DOS ESPECIALISTAS
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OS VOTOS DOS LEITORES
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GETÚLIO VARGAS – Herança onipresente
As contradições na vida do maior personagem da História do Brasil
CURRÍCULO
Nome: Getúlio Dornelles Vargas
Nascimento: São Borja (RS), 19 de abril de 1882
Morte: Rio de Janeiro (RJ), 24 de agosto de 1954
Ocupação: Presidente da República
Nenhum brasileiro poderia ser mais polêmico. E, ao mesmo tempo, não há dúvidas que não deveria ser outro na primeira posição desta lista. Getúlio Vargas foi um ditador – e um presidente democrático – que dividiu o país. É possível amar ou detestar seu legado. Mas é impossível negar que ele está em todo lugar. A Consolidação das Leis do Trabalho, a legislação sindical, a Petrobras, a Ordem dos Advogados do Brasil, e mesmo coisas mais abstratas, como um certo nacionalismo excludente, que encara adversários como “entreguistas”, inimigos da nação, todas são heranças da Era Vargas, que, 80 anos depois, ainda não é objeto de consenso entre pesquisadores.

A própria natureza política de Vargas é difícil de avaliar. A Revolução de 1930, na qual ascendeu ao poder como presidente provisório, prometia industrializar o Brasil e corrigir os defeitos antidemocráticos da República Velha. Em 1932, o voto tornou-se secreto, obrigatório e passou a incluir as mulheres, de forma a acabar com o “voto do cabresto”, no qual líderes locais pressionavam os eleitores a elegerem seus candidatos, já que era possível saber quem votava em quem. A demora em entregar uma nova Constituição e o fato de a Revolução ter deposto um paulista, Washington Luís, levaram São Paulo a uma guerra civil, a Revolução Constitucionalista de 1932. O estado foi derrotado, mas a Constituição saiu, por meio de uma assembleia eleita de acordo com novas leis, em 1934.
Eleito indiretamente no mesmo ano, Vargas detestou o resultado da Constituição, para ele oneroso demais para o orçamento público e liberal no combate à subversão – em 1935, houve um levante comunista. Antes que seu mandato acabasse, em 1937, ele deu um autogolpe, impondo uma nova Carta, que proibia greves, acabava com os governos estaduais e permitia ao governo demitir funcionários públicos, baseada na Constituição da Polônia, de inspiração fascista.
O Brasil desenvolveu indústrias de base, como a Companhia Siderúrgica Nacional, de 1941, e a Vale do Rio Doce, no ano seguinte. Também deu uma séria guinada para o fascismo. Foi estabelecido um culto à personalidade do ditador, e as manifestações culturais foram enquadradas numa perspectiva nacionalista e construtiva. Em 1942, esse país autoritário entraria em guerra contra o fascismo, tornando-se o único da América Latina a enviar tropas à Europa – e vencer os alemães, diga-se.
A contradição em lutar por democracia com uma ditadura em casa não passou despercebida. Ao fim da guerra, Vargas foi deposto. Mas sua popularidade era imensa, e ele voltou como presidente eleito em 1951. O Getúlio democrático governou um país sectário. A imprensa e a classe média estavam contra ele. A esquerda, que Vargas havia perseguido, passou a apoiá-lo. Em tempos de Guerra Fria, essa aliança apenas exaltou os ânimos. Em meio a uma furiosa polêmica causada por uma tentativa de assassinato ao jornalista opositor Carlos Lacerda por um membro da guarda pessoal do presidente, Vargas escreveu seu famoso “Saio da vida para entrar para a História” e deu um tiro no coração. Seu fantasma assombraria o país para sempre. Seriam seus aliados ou opositores que decidiriam o futuro do Brasil pelas próximas gerações.
O BRASIL DE GETÚLIOAno: 1940
População: 41 263 315
População rural: 68%
Taxa de analfabetismo: 56,1%
Regime político: Estado Novo (ditadura civil)
COMO SERIA SEM ELEProvavelmente o país seria ainda mais agrário. As indústrias petrolífera, de mineração e siderúrgica talvez não tivessem sido fundadas, ou seriam multinacionais. Por outro lado, com ânimos políticos menos exaltados, o país poderia ter escapado de duas ditaduras.
DOM PEDRO II – Imperador cidadão
O monarca que gostaria de ser presidente
CURRÍCULO
Nome: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga
Nascimento: Rio de Janeiro (RJ), 2 de dezembro de 1825
Morte: Paris (França), 5 de dezembro de 1891
Ocupação: Imperador do Brasil
Ele reinou por 58 anos, no mais longo período de estabilidade política do país. E isso em si já é uma conquista: quando, em 23 de julho de 1840, foi declarado maior de idade, aos 14 anos, e assumiu o trono, o Brasil enfrentava três revoltas separatistas: a Cabanagem, no Pará, a Balaiada, no Maranhão, e a Farroupilha, no Rio Grande do Sul. Além dos conflitos civis, Pedro também venceria três guerras externas – a do Prata (1851-1852), do Uruguai (1864) e do Paraguai (1864-1870).

Apesar do histórico militar impecável, não é pelas glórias da caserna que o imperador ficou conhecido. Pedro foi, como diz o historiador Jean Marcel Carvalho França, “um dos melhores governantes que teve o Brasil, quiçá o melhor”. Enquanto os vizinhos saltavam de caudilho em caudilho, o Brasil contava com plena liberdade de pensamento e direitos constitucionais, ao mesmo tempo que ferrovias e as primeiras indústrias se instalavam no país. As eleições podiam ser falhas e manipuladas localmente por liberais e conservadores, mas a existência dos partidos era garantida.
O imperador jamais abusou de seus poderes. E a sociedade aproveitava a liberdade. A imprensa fazia críticas tão ferozes que até viajantes europeus as consideravam excessivas. A reação do monarca intelectual deveria servir de exemplo para políticos brasileiros de hoje: ele mesmo pegava na pena e escrevia réplicas, publicadas sob pseudônimo.
A liberdade política convivia com a grande mácula da escravidão. “Pedro consubstancia, como Vargas, as contradições do Brasil. Soberano culto, moderado, antenado com a ciência, foi também o monarca da escravidão”, diz Pedro Paulo Funari, da Unicamp. As contradições eram grandes. Pedro era liberal convicto, até demais. Em 1862, registrou em seu diário: “Nasci para consagrar-me às letras e às ciências, e, a ocupar posição política, preferiria a de presidente da República ou ministro à de imperador”. A seu próprio exemplo, os liberais brasileiros eram, em maioria, republicanos. Quem apoiava a monarquia era o Partido Conservador, dos proprietários de escravos. Assim, um imperador liberal, que repudiava a escravidão, era sustentado por quem vivia da instituição.
Pedro buscou uma abolição gradual. A Lei do Ventre Livre, de 1871, evitava o nascimento de novos escravos. E a Lei dos Sexagenários, de 1885, libertou os mais velhos. Elas costumam ser subestimadas, mas a população de escravos caiu de 1,6 milhão em 1872 para 720 mil em 1887. Assinada por sua filha Isabel, a Lei Áurea, sem indenização aos proprietários, fez com que os conservadores retirassem o apoio à monarquia.
Com ninguém interessado em que a caseira e carola princesa Isabel fosse imperatriz, em 15 de novembro de 1889 um golpe militar acabou com o regime – e com todas as liberdades civis. O imperador republicano não fez nada para manter seu trono. Ele se mostrou mais ofendido com o exílio do que com a queda da monarquia. Longe do país, em depressão, morreu o “governante que amava o Brasil acima de tudo e que dedicou sua vida a tentar fazer de sua pátria um país melhor”, nas palavras da historiadora Isabel Lustosa. O Brasil guardaria os exemplos de tolerância e liberdade plantados em seu governo.
O BRASIL DE PEDRO IIAno: 1872
População: 9 930 478
População rural: 90%
Taxa de analfabetIsmo: 82,3%
Regime político: monarquia constitucional
COMO SERIA SEM ELEO país provavelmente seria dividido em pequenas repúblicas dominadas por caudilhos, que travariam guerras entre si. Ainda que o Brasil tenha passado por ditaduras, graças ao imperador democracia e liberdade de expressão têm uma longa tradição no país.
DOM PEDRO I – O herói de dois países
O monarca corajoso que salvou o Brasil e Portugal
CURRÍCULO
Nome: Pedro de Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon
Nascimento: Queluz (Portugal), 12 de outubro de 1798
Morte: Queluz, 24 de setembro de 1834
Ocupação: Imperador e rei

O primeiro imperador do Brasil fazia o que queria. Em 9 de janeiro de 1822, por causa de suas amizades e do amor ao lugar no qual havia passado a maior parte da vida, decidiu não embarcar para Portugal, onde nasceu e era o primeiro na linha de sucessão. Recusando um trono europeu, preferiu tornar-se o único monarca da América. Aliás, recusou dois tronos: a Grécia, que conquistou a independência do Império Otomano em 1820, havia proposto a Portugal que lhes enviasse o herdeiro para fundar uma nova monarquia.
É piada velha no Brasil lembrar um detalhe patético – e irrelevante – da independência, que o imperador passava mal dos intestinos. Mas ninguém pode negar o intenso teor nas palavras “Independência ou morte”. E morte houve: a pouco falada Guerra de Independência se estenderia até 1824, deixando 1 800 baixas. É relativamente pouco diante do que enfrentaram os vizinhos hispânicos. Portugal não empenhou todas suas forças em impedir que alguém de sua casa imperial fosse rei do novo país. Pedro, assim, se tornou o “artífice da forma conciliatória de nossa independência”, como afirma o professor Lincoln Secco, da USP.
O imperador também era radical nas ideias. Nascido após a Revolução Francesa, no que era uma das últimas monarquias absolutistas da Europa, tornou-se adepto do liberalismo – ideologia então revolucionária, e, vale lembrar, esposada pelo maior inimigo de Portugal, a França de Napoleão Bonaparte. Foi por esses ideais que, afinal, havia sido criado no Brasil, após a fuga da corte portuguesa diante das tropas napoleônicas, em 1808. Ele poderia tentar, como seus ancestrais, governar como monarca absoluto – e não faltavam brasileiros que apoiassem a ideia. Em vez disso, fez questão que o Brasil tivesse uma Constituição, em grande parte inspirada na Carta da França revolucionária. A Constituição de 1824 foi outorgada depois que ele cassou a Assembleia Constituinte, que se recusou a dar poder político ao imperador. A Assembleia estabelecia uma separação de poderes e um governo indireto do imperador, por meio de ministros apontados por ele.
A impulsividade de Pedro I acabaria levando à sua queda. No ano da independência, havia se tornado amante de uma fidalga paulista, a divorciada Domitila de Castro. Ele não fez questão de ocultar o romance – dando à amante o título de Marquesa de Santos, um dos mais altos da nobreza. Isso chocou visitantes estrangeiros e alienou sua esposa, a austríaca Maria Leopoldina. Amada pelos brasileiros, a imperatriz morreu em 1826, sob suspeita (falsa) de violência doméstica. Os políticos o viam como um personagem autoritário e lançavam suspeitas sobre seus laços com Portugal. O libertador do Brasil abdicou do trono em 1831.
Pedro foi a Portugal para lutar contra seu irmão, dom Miguel IV, que havia tomado o poder em 1828, num golpe absolutista. Com a vitória de Pedro, garantiu-se a liberdade constitucional em Portugal. Para a historiadora Isabel Lustosa, “Pedro I foi personagem fundamental para o processo de implantação do liberalismo político no Brasil e em Portugal”. Atacado pela tuberculose, morreu como herói de dois países no mesmo quarto onde nasceu 35 anos antes.
O BRASIL DE PEDRO IAno: 1825
População: 5 000 000 (estimativa)
População rural: sem dados, mais de 90%
Taxa de analfabetismo: sem dados, mais de 90%
Regime político: monarquia constitucional
COMO SERIA SEM ELEA independência possivelmente aconteceria por meio de uma guerra bem mais sangrenta, dando origem a uma ou mais repúblicas. Seriam países autoritários: ou ditaduras explícitas, como no Paraguai, ou repúblicas dominadas por caudilhos, como na Argentina.
JOSÉ BONIFÁCIO – O pai da pátria
O cientista e intelectual que moldou o Brasil independente
CURRÍCULO
Nome: José Bonifácio de Andrada e Silva
Nascimento: Santos (SP), 13 de junho de 1763
Morte: Niterói (RJ), 6 de abril de 1838
Ocupação: Político e cientista

À primeira vista, pode parecer uma imensa “zebra” que um homem que nunca governou o país nem deixou uma obra extensa esteja em posição tão alta na lista. Mas os historiadores têm razão. José Bonifácio é o nosso “pai da pátria”, como lembra Mary del Priore. Ele representa para o Brasil o que Benjamin Franklin é para os Estados Unidos: um filósofo-cientista que conseguiu moldar um novo país às suas ideias. “Além de ter antecipado temas importantes para o destino do Brasil, como a abolição, a independência econômica, a organização da Marinha, a preservação da natureza e a redistribuição de terras, foi o brasileiro mais inteligente de seu tempo”, diz a historiadora Isabel Lustosa.
Na independência, Bonifácio tinha quase 60 anos. Vinha de uma longa carreira, a maior parte dela na Europa. Estudou direito e filosofia natural na Universidade de Coimbra, onde entrou em 1783, e tornou-se um dos mais respeitados cientistas do Império Português, tratando principalmente de química e mineralogia. Em 1808, quando as tropas de Napoleão invadiram Portugal, ele não veio ao Brasil junto com a corte portuguesa. Ficou lá para defender o país que considerava seu: tornou-se comandante do Batalhão Acadêmico, uma milícia formada por estudantes e professores. A iniciativa aparentemente quixotesca teve alguns sucessos, como a tomada do Forte de Santa Catarina das forças napoleônicas, no primeiro ano da guerra. Os franceses nunca conseguiriam dominar totalmente o país.
Assim, foi como um patriota português que José Bonifácio voltou ao Brasil em 1819. Com a perspicácia de cientista, começou a desvelar vários planos para o país: o fim da escravidão, a criação de escolas públicas, a preservação ambiental e a reforma agrária, confiscando propriedades improdutivas. Ele só se tornou adepto da independência na última hora, defendendo a representatividade igualitária dos brasileiros nas cortes de Lisboa – mas as cada vez mais claras intenções portuguesas em tornar o Brasil novamente colônia o fizeram aderir ao movimento. Quando dom Pedro I decidiu ficar no Brasil, ele chamou José Bonifácio para ocupar o cargo de ministro de Negócios do Império – jamais um brasileiro havia ocupado posto tão alto. No ano seguinte, com seu irmão Martim Francisco, foi um dos membros da Assembleia Constituinte, liderando o bloco dos liberais. Com a Assembleia propondo tornar o imperador uma figura simbólica, sem poder nenhum, dom Pedro I a dissolveu em 12 de novembro de 1823, outorgando uma Constituição liberal, mas que mantinha o imperador como chefe do Poder Executivo. Perseguido, o velho pai da pátria foi exilado para a França. Mas esse não seria seu fim.
Em 1828, os irmãos Andrada puderam voltar ao Brasil. Dom Pedro I enfrentava uma crise de popularidade aqui e problemas externos em Portugal. Quando abdicou da coroa e foi para a Europa, em 1831, deixou a José Bonifácio o cargo de tutor oficial de seus filhos. Assim, a formação intelectual de dom Pedro II, um dos pontos mais notáveis do monarca, deve seu início a José Bonifácio. O “lider ilustrado da independência do Brasil”, como define o professor Lincoln Secco, da USP, merece ser chamado de “pai da pátria”.
O BRASIL DE BONIFÁCIOAno: 1820
População: 4 717 000 (estimativa)
População rural: sem dados, mais de 90%
Taxa de analfabetismo: sem dados, mais de 90%
Regime político: colônia portuguesa
COMO SERIA SEM ELEA independência poderia ter naufragado, ou talvez o regime resultante fosse uma tirânica monarquia absolutista, nascida da necessidade de unir o país à força. Ainda que ele não tenha conseguido banir a escravidão, ter um pai da pátria como abolicionista ajudou a causa.
JUSCELINO KUBITSCHEK – Senhor simpatia
Presidente deixou sua marca com a construção de Brasília
CURRÍCULO
Nome: Juscelino Kubitschek de Oliveira
Nascimento: Diamantina (MG), 12 de setembro de 1902
Morte: Resende (RJ), 22 de agosto de 1976
Ocupação: Presidente do Brasil

Na opinião dos leitores, não resta dúvida: JK é o número 1. É testamento vivo de seu carisma que um presidente que assumiu o poder há quase 60 anos, cuja maior realização é uma cidade que não está exatamente em alta conta no imaginário popular, e que deixou o país em situação complicada para seus sucessores, consiga se manter como o mais amado da História do Brasil. Em 2001, numa pesquisa similar entre seus leitores, ele foi eleito pela revista Épocacomo o “brasileiro do século”.
Boêmio, amante das coisas boas da vida e famoso por seu gosto por dançar, Juscelino assumiu a cadeira presidencial no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, em 31 de janeiro de 1956. Já tinha fama de “grande modernizador, responsável pela busca do futuro, em detrimento do passado”, como define Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Sua promessa de campanha era fazer o Brasil avançar “50 anos em 5”, e a principal peça desse plano era a nova capital. A ideia vinha desde tempos coloniais, por considerações estratégicas – evitar um ataque naval à capital – e também como forma de levar parte da população para o centro do país, praticamente desabitado.
Quando JK deixou a cadeira, em 1961, sem possibilidade de reeleição pelas leis da época, o fez do Palácio do Planalto, em Brasília. Deixava também uma “herança maldita” a seus sucessores, na forma de dívidas acumuladas na construção da capital e uma inflação galopante.
A outra parte de seu plano era trazer a modernidade capitalista para o Brasil, construindo obras para resolver os gargalos de infraestrutura – o famoso “custo Brasil” que ainda hoje aparece no noticiário econômico. Isso consistia na criação de hidroelétricas, como o complexo de Furnas, e inauguração de estradas, como a Fernão Dias, de São Paulo a Belo Horizonte. As obras se davam em paralelo à abertura do país para o capital estrangeiro, com a chegada de montadoras de automóveis, além do corte de impostos para importações de máquinas. As novas oportunidades deram início ao ciclo de migração do Nordeste para os polos industriais do sul do país.
O Brasil avançou menos de 50 anos, mas a mística de JK tem mais a ver com seu tempo do que com suas realizações. JK assumiu após o suicídio de Getúlio Vargas, enfrentou tentativas de impedir sua posse e conseguiu governar por um período de paz e liberdade. O Brasil ganhou sua primeira Copa do Mundo em 1958 e a Bossa Nova fez sucesso no exterior. Brasília era uma cidade de ficção científica, inteiramente planejada. Parecia a quem viveu então que finalmente se cumpriria a profecia do escritor alemão Stefan Zweig, que “o Brasil é o país do futuro”. A era JK ficou conhecida como os “Anos Dourados” – ainda mais pelo contraste com o que viria a seguir, uma crise institucional que só terminou no golpe de 1964. Durante a ditadura, em 1966 ele se aliou ao ex-adversário Carlos Lacerda e ao presidente deposto João Goulart, que havia sido vicepresidente em seu governo, na Frente Ampla pela Redemocratização. Morreu em um acidente na Via Dutra em 1976, um fato que ainda é colocado em dúvida por muita gente. A Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo concluiu que sua morte foi uma conspiração de militares.
O BRASIL DE JKAno: 1960
População: 70 070 457
População rural: 52%
Taxa de analfabetismo: 39,6%
Regime político: democracia (sem voto de analfabetos)
COMO SERIA SEM ELEO Rio de Janeiro continuaria a ser a capital. A fronteira agrícola não iria se expandir para o Centro-Oeste. A migração nordestina para as regiões ao sul possivelmente não teria ocorrido, ou seria menos intensa. Ninguém chamaria a década de 50 de “anos dourados”.
JOAQUIM NABUCO – A consciência da elite brasileira
Nascido privilegiado, enfrentou a escravidão e a Igreja
CURRÍCULO
Nome: Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo
Nascimento: Recife (PE), 19 de agosto de 1849
Morte: Washington (EUA), 17 de janeiro de 1910
Ocupação: Abolicionista, diplomata, político, jornalista

Ilustre desconhecido para o leitor – ficou na 27ª colocação na votação pela internet, atrás de Pelé e Ayrton Senna –, Joaquim Nabuco é um personagem que precisa de introdução. Nascido em uma geração de talentos brilhantes, a mesma de Machado de Assis e Rui Barbosa, foi o maior pensador brasileiro de seu tempo. “Em um país carente do gênero, foi um intelectual e um político de primeira grandeza, que deu uma contribuição relevante para fazer avançar a ‘civilização brasileira’”, afirma Jean Marcel Carvalho França, da Unesp.
A principal herança de Nabuco foi como figura central da campanha abolicionista. “Herdeiro da nobreza do Império, sobre a qual escreveu obra notável, foi ativo militante da causa abolicionista, autor da obra mais consistente de seu tempo sobre o assunto”, diz Isabel Lustosa. O escritor não poupava palavras: “A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que se não pode sondar”, escreveu. Mas a questão foi sondada, e por isso sabe-se hoje a profundidade do problema. Durante o século 20, sociólogos como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda deixaram claro o quanto a instituição cravou uma vergonhosa marca nos costumes e cultura do país, visível ainda hoje.
A biografia do intelectual é, de certa forma, um contraponto à de Machado de Assis, com o qual travou uma longa amizade. Se o último nasceu pobre e mulato, e nunca conseguiu estudar, o primeiro era um fruto do privilégio. Filho do senador pernambucano José Tomás Nabuco de Araújo, formou-se em direito e sua primeira ação política foi defender um escravo acusado de assassinar o senhor, em 1869. Em 1876, conseguiu um cargo como adido da legação brasileira nos EUA, vivendo em Nova York e Washington. Dois anos depois, foi eleito deputado por Pernambuco pelo Partido Liberal. Defendeu não apenas a abolição, mas também os direitos dos indígenas, posicionando-se contra um projeto de exploração do Rio Xingu. Em 1880, fundou a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, a ponta de lança em seu combate.
Foi ousadia demais mesmo para os liberais, vários dos quais eram senhores de terras. Sem apoio do partido, não conseguiu se reeleger. Assim, em 1882, iniciou carreira como jornalista, chegando a correspondente em Londres. Escreveu sobre tudo, tornando-se uma espécie de voz da consciência da elite brasileira. Isso inclui uma segunda causa, menos lembrada: a laicidade do Estado. O intelectual chegava a soar anticlerical ao tratar da influência do catolicismo no Estado – que ainda o tinha como religião oficial. Nabuco criticava a hipocrisia dos padres em relação à escravidão: “A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”. Foi por influência dele e de outros intelectuais que a República abandonou a ideia de religião oficial.
Nabuco defendeu até o fim a monarquia constitucional. Convidado a participar da Assembleia Nacional Constituinte de 1891, recusou a oferta, lançando o manifesto Por Que Sou Monarquista. A briga com a República acabou em 1900, quando aceitou um cargo na Inglaterra. Ainda seria embaixador em Washington, em 1905, e presidiria a III Conferência Pan-Americana, no ano seguinte.
O BRASIL DE NABUCOAno: 1872
População: 9 930 478
População rural: 90%
Taxa de analfabetismo: 82,3%
Regime político: monarquia constitucional
COMO SERIA SEM ELENa ausência de uma figura de alto calibre para lhe dar força, o movimento abolicionista poderia ter continuado a ser visto como rebeldia juvenil, atrasando a abolição. A república talvez continuasse a manter o catolicismo como religião oficial. Em resumo, o Brasil seria mais atrasado.
MACHADO DE ASSIS – Amargura nos trópicos
O maior autor brasileiro contrasta com todos os estereótipos do país
CURRÍCULO
Nome: Joaquim Maria Machado de Assis
Nascimento: Rio de Janeiro (RJ), 21 de junho de 1839
Morte: Rio de Janeiro (RJ), 29 de setembro de 1908
Ocupação: Escritor, fundador da Academia Brasileira de Letras

Poucos personagens destoam mais daquilo que se costuma popularmente associar ao Brasil que o maior autor da literatura nacional. Em pleno Rio de Janeiro tropical, suas histórias revelam obsessões por morte, melancolia e traição. E, ao mesmo tempo, ninguém podia ser mais representativo: nascido de um pintor de paredes mulato e uma lavadeira portuguesa, tornou-se órfão de mãe aos 10 anos de idade. Sem nunca pisar na sala de aula de uma universidade, Machado de Assis teve de inventar a si mesmo.
E que colossal construção foi essa: na definição de Jean Marcel Carvalho França, da Unesp, Machado foi “um dos poucos escritores brasileiros que podem, sem qualquer apelo ao nacionalismo tolo que atualmente contamina o país, ser incluído no rol dos grandes literatos do Ocidente”. O crítico literário americano Harold Bloom, um dos mais respeitados do mundo, o colocou entre os 100 maiores autores de todos os tempos, ao lado de figuras como Homero, Shakespeare, Cervantes e Dante Alighieri. Bloom afirmou que o brasileiro foi o “maior autor negro da História” – e o coloca acima de clássicos como o francês Alexandre Dumas e o russo Alexander Pushkin.
Relacionado ao fato de ser negro está uma das maiores controvérsias de sua carreira. Ele enfrentou o preconceito da família de sua esposa, a portuguesa Carolina Novais, que foi rejeitada pelos pais por ter-se casado com o mestiço. Grande mestre da ironia, Machado nunca usava de linguagem direta para expressar suas opiniões. Por isso, foi acusado por contemporâneos, como José do Patrocínio e Lima Barreto, de ficar em cima do muro sobre a maior questão de seu tempo, a escravidão. Seus livros abordam o tema do ponto de vista do dominador, com personagens centrais brancos e privilegiados. Em décadas mais recentes, críticos como Roberto Schwarz têm tentado tirar do autor essa mácula de “embranquecido”, ressaltando quanto sua crítica da escravidão e relações raciais pode ser lida nas entrelinhas. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1880), por exemplo, o personagem principal aparece recordando com saudades como fazia um escravo de cavalinho na infância – e esse mesmo escravo, depois alforriado, torna-se proprietário de escravos, uma amarga ironia sobre a condição dos negros. Em uma obra escrita depois da abolição, o conto Pai Contra Mãe, de 1906, o autor foi mais explícito: um capitão do mato sem condições de sustentar o filho captura uma escrava fugida grávida.
Em todo caso, é difícil cobrar engajamento político de um autor que, como diz Mary del Priore, “começa a vida progressista e liberal e termina num paternalismo conservador”. A revolução, em Machado de Assis, ficava para a literatura, com seu livro mais radical, Memórias Póstumas, tendo passagens que soam experimentais ainda hoje. Ele recusava as novidades ideológicas da época, como o socialismo, o darwinismo social e o positivismo. Em um país que tentou se refundar por três vezes, por meio de golpes que levaram ao chão as instituições, não deixa de ser salutar haver essa voz contrastante. Machado de Assis temperou os açucarados excessos tropicais brasileiros com uma bem-vinda dose de amargura.
O BRASIL DE MACHADOAno: 1872
População: 9 930 478
População rural: 90%
Taxa de analfabetismo: 82,3%
Regime político: monarquia constitucional
COMO SERIA SEM ELEA literatura brasileira manteria um certo complexo de vira-lata, sem nenhum autor de alcance mundial. O fato de o maior autor do Brasil não ter sido branco sempre foi um entrave para os adeptos de teorias raciais por aqui – sem ele, o país seria ao menos um tanto mais racista.
OSCAR NIEMEYER – O arquiteto do futuro
Brasileiro deu origem a um estilo de construção internacional
CURRÍCULO
Nome: Oscar Ribeiro de Almeida Niemeyer Soares Filho
Nascimento: Rio de Janeiro (RJ), 15 de dezembro de 1907
Morte: Rio de Janeiro (RJ), 5 de dezembro de 2012
Ocupação: Arquiteto e artista

A cena se repetiu várias vezes na última década: quando alguém perguntava ao centenário arquiteto sobre sua inspiração, ele se punha a desenhar mulheres nuas. “A forma segue o feminino”, dizia Oscar Niemeyer, que desafiou ao longo de toda a vida a tendência internacional por torres fálicas e caixotões angulosos. Dessa maneira algo folclórica, argumentava o “arquiteto mais importante do Brasil”, de acordo com Andrea Casa Nova Maia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no que parece ser um consenso quase universal, mesmo entre seus piores detratores.
Em 1934, quando pegou seu diploma de arquiteto, a maior novidade era o chamado estilo internacional, que é fácil de reconhecer: são as típicas torres corporativas, sem qualquer ornamento e com janelas de vidro reflexivo. Niemeyer começou na profissão como adepto do estilo: seu primeiro trabalho importante, o Palácio Gustavo Capanema, projetado em 1939 e concluído em 1943 como sede do Ministério da Educação e Saúde, parece à primeira vista uma típica caixa modernista. Mas pequenas “heresias” entregam o autor: as caixas-d’água são curvas, e um mural de azulejos decora o vão do prédio – decoração era palavrão para os modernistas de então. Concluído no mesmo ano, a pedido do então prefeito Juscelino Kubitschek, o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte, revela de uma vez por todas as formas curvilíneas que fariam sua fama para sempre.
As duas obras lançaram o brasileiro ao estrelato internacional – que não pode ser subestimado. Em 1939, ele projetou a sede da Organização das Nações Unidas em Nova York, junto com um de seus inspiradores, o suíço Le Corbusier. Por duas vezes, ele foi convidado a dar aulas em universidades americanas, primeiro em Yale, em 1946, e depois em Harvard, em 1953. Em ambas, seu visto de trabalho foi barrado por ser abertamente comunista – e isso custaria ao Brasil seu exílio por quase todo o período militar, amargamente instalado na capital que, em grande parte, ele havia desenhado. “Niemeyer representa bem a ânsia de progresso técnico e social, com reconhecimento mundial. Suas contradições – pouco interesse pelo passado e pelas liberdades individuais – retratam bem o Brasil”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. Até Niemeyer, a tendência no Brasil era imitar o que se passava no exterior, às vezes de forma literal – concluído em 1939, o Edifício Altino Arantes, em São Paulo, é uma quase cópia do Empire States, com um terço do tamanho do original. Passou-se então a imitar Niemeyer.
E não só aqui: existe até um nome em inglês para a arquitetura que remete a ele: googie, um estilo futurista que foi usado em cassinos de Las Vegas, em aeroportos e até lava-rápidos nos anos 50 e 60. A arquitetura brasileira acabou no desenho animado Os Jetsons, série na qual todos os prédios pareciam ter sido transplantados de Brasília: “A arquitetura é claramente inspirada em profissionais que trabalharam no estilo moderno da metade do século 20, como John Lautner e Oscar Niemeyer”, escreveu o especialista em ficção científica Matt Novak, da Fundação Smithsonian, ao tratar do desenho animado. O estilo pode ter saído de moda, mas, graças a Niemeyer, houve um dia em que o Brasil realmente foi o país do futuro.
O BRASIL DE NIEMEYERAno: 1960
População: 70 070 457
População rural: 52%
Taxa de analfabetismo: 39,6%
Regime político: democracia (sem votos de analfabetos)
COMO SERIA SEM ELEA arquitetura brasileira continuaria a ser baseada em clones em miniatura de arranha-céus americanos. Brasília teria um aspecto convencional, provavelmente tedioso e opressivo. No mundo inteiro, os anos 50 e 60 seriam, literalmente, muito mais quadrados.
ZUMBI DOS PALMARES – Em guerra contra a escravidão
Figura do líder assumiu proporções míticas
CURRÍCULO
Nome: Zumbi
Nascimento: Quilombo dos Palmares (AL), 1655
Morte: Serra Dois Irmãos (AL), 20 de novembro de 1695
Ocupação: Líder quilombola

Existe uma razão por que a data de morte Zumbi dos Palmares tornou-se o Dia da Consciência Negra. O Brasil teve vários abolicionistas, alguns deles negros, como José do Patrocínio (1853-1905). Mas todos tinham algumas características em comum: eram, brancos ou negros, respeitáveis senhores nas suas elegantes casacas novecentistas, parte do sistema sustentado pela escravidão, e defendiam uma reforma, não uma revolução. Patrocínio até mesmo organizou uma “guarda negra”, formada por ex-escravos, para atacar comícios republicanos. Zumbi não apenas não fazia parte disso como viveu em guerra contra o sistema que sustentou o Brasil colonial e imperial.
Sobrinho do rei Ganga Zumba, Zumbi iniciou uma insurreição contra o tio quando ele tentou um acordo de paz com os portugueses, em 1678. Zumbi não queria viver como um subalterno nas terras dos brancos, se é que eles cumpririam a promessa de não torná-los escravos novamente. O antigo rei foi envenenado por um de seus seguidores, e ele ascendeu ao trono, para passar mais de 20 anos em guerra contra os portugueses. Resistiu até a fatídica tomada do quilombo pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, em fevereiro de 1694. O líder escapou e passaria quase dois anos rondando pela floresta com sua tropa, até ser traído e cercado com seus últimos 20 soldados. Sua cabeça foi exposta ao público para desmentir sua fama de imortal – “zumbi” quer dizer “espírito” nas línguas bantu do sul da África.
Palmares era um pedaço da África bantu transplantado para o Brasil. “Em plena escravidão, Zumbi foi líder de uma comunidade livre e que acolhia pessoas perseguidas, como judeus, muçulmanos, mulheres acusadas de bruxaria e índios”, afirma Pedro Paulo Funari, da Unicamp. A população geral dos Palmares pode ter chegado a 30 mil pessoas, em vilas e numa aldeia central fortificada, defendida por armas de fogo. Quem mandava eram os monarcas bantus, mantendo costumes ancestrais. E isso incluía a escravidão: só quem chegava por seus próprios meios, fugido, era considerado livre. Aqueles que fossem capturados em ataques contra fazendas continuavam a ser escravos.
Isso talvez soe chocante, mas seria anacrônico exigir de um líder africano do século 17 que fosse contra a instituição da escravidão. Negros, brancos e índios escravizavam-se mutuamente desde a Pré-História. E, afinal, Palmares continuava a ser um refúgio para os perseguidos. “Com todas as limitações da época, constitui um exemplo de convivência que pode nos inspirar ainda hoje”, afirma Pedro Paulo Funari. E, em todo caso, é recomendável uma leitura cuidadosa da história de Zumbi. Talvez ele pertença mais ao domínio do mito do que da realidade. Tudo o que se sabe sobre ele foi escrito por seus inimigos, e alguns historiadores nem mesmo acham que ele fosse uma pessoa real. Jean Marcel Carvalho França – que participou da eleição, mas não votou em Zumbi – afirma em seu livro Três Vezes Zumbi que o nome provavelmente se referia a um título, o general do quilombo, e não a uma única pessoa. O professor Lincoln Secco, da USP, define Zumbi como uma “figura mítica da resistência ao escravismo”. É assim, com tal sentido mítico, que o grande guerreiro negro deve ser entendido.
O BRASIL DE ZUMBIAno: 1690
População: 242 000 (estimativa)
População rural: sem dados, mais de 90%
Taxa de analfabetismo: sem dados, mais de 90%
Regime político: colônia portuguesa
COMO SERIA SEM ELENão haveria um símbolo rebelde para o movimento negro. Os militantes teriam de se conformar com pacatos e europeizados abolicionistas do século 19. Faz toda a diferença que tenha havido um legítimo rei e general africano no Brasil.
MONTEIRO LOBATO – Tempestade intelectual
Em causas certas e erradas, ele mandou às favas o “homem cordial”
CURRÍCULO
Nome: José Bento Renato Monteiro Lobato
Nascimento: Taubaté (SP), 18 de abril de 1882
Morte: São Paulo (SP), 4 de julho de 1948
Ocupação: Escritor, editor, empresário

Nacionalista fã dos Estados Unidos. Modernista que odiou a Semana de Arte Moderna. Empresário sagaz que fundou a indústria editorial no país e morreu com fama de comunista. Adepto inicial de teorias racistas, que depois embarcou numa cruzada para salvar o homem do campo. Autor de livros infantis que amava viver em guerra com os adultos. Esse foi Monteiro Lobato – um brasileiro que podia estar errado, mas não podia ser ignorado.
Hoje, ele é lembrado como o “criador de uma literatura infantil genuinamente brasileira, com cheiros, cores e sabores das casas do interior do país”, na definição de Isabel Lustosa, da Fundação Casa de Rui Barbosa. Mas seria uma injustiça limitar o turbilhão intelectual que foi Monteiro Lobato aos seus personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Metade do que escreveu se destinava a adultos, e ele levava isso ferrenhamente a sério: defendia suas ideias – que eram muitas, e nem sempre boas – de forma sincera, cruel e virulenta. Em um país que preza a conciliação, ele era a voz rebelde e ruidosa a discordar da maioria. Para Pedro Paulo Funari, da Unicamp, foi “inspiração como intelectual engajado”.
Lobato entrou no discurso público chutando a porta, em 1912, quando o jornal O Estado de S. Paulopublicou seu artigo Velha Praga, no qual descrevia o caboclo, mestiço de índio e português que habitava desde os tempos coloniais as zonas rurais do Brasil como um “funesto parasita... inadaptável à civilização”. Morando em uma fazenda em Taubaté, interior de São Paulo, ele andava às turras com seus vizinhos caboclos, que insistiam em fazer queimadas mesmo em época de secas, arruinando suas terras. Na véspera de Natal daquele ano, o mesmo jornal lançou o conto Urupês – nome para o orelha-de-pau, um fungo que cresce em madeira podre. Foi a estreia nada simpática do Jeca Tatu, cuja preguiça seria a causa de todos os males do país.
Em 1918, fundou a Monteiro Lobato & Cia., primeira editora criada por um brasileiro, que lançou os pioneiros best-sellers nativos. Lobato dizia que “livro é sobremesa, tem que ser posto debaixo do nariz do freguês”. Com livros coloridos e ilustrados, fez fortuna na década seguinte. O racismo anticaboclo foi abandonado nos anos 20, quando leu a respeito da ancilostomose, o amarelão, doença que causava o que ele julgava ser preguiça – o Jeca passou a ilustrar cartilhas de conscientização dos órgãos de saúde. Lobato partiria para outras brigas: desancou o modernismo ao criticar uma exposição de Anita Malfatti, no artigo Paranoia ou Mistificação, acusando os modernistas de colonizados. Na década seguinte, entrou em campanha para a exploração do petróleo no Brasil pela iniciativa privada, acusando o governo Vargas de “não perfurar e não deixar que se perfure”. Foi parar na cadeia em 1941.
Anglófilo, viveu nos Estados Unidos entre 1927 e 1931 como adido comercial do governo, e não se importava em enfiar personagens como Popeye no Sítio do Pica-Pau. Seu desgosto com o Estado Novo o levou à esquerda, aproximando-se de Luís Carlos Prestes. Em seu último livro, Zé Brasil (1947), criticou a estrutura fundiária e as desigualdades sociais. O grande empreendedor morreria como simpatizante do comunismo.
O BRASIL DE LOBATOAno: 1920
População: 30 635 605
População rural: 84%
Taxa de analfabetismo: 65%
Regime político: república sem sufrágio universal (votavam homens alfabetizados, acima de 21 anos)
COMO SERIA SEM ELEA literatura infantil provavelmente ainda seria composta de traduções de autores internacionais. A indústria editorial, dominada por estrangeiros. O nacionalismo talvez ainda tivesse matizes românticas. A polêmica feroz seria tida como coisa de estrangeiros.