Há 25 anos, os iranianos tomados por um sentimento nacionalista e fortemente religioso, derrubaram o governo pró-Ocidente e levaram ao poder um grupo fundamentalista que alteraria o destino do Oriente Médio
Isabelle Somma | 01/04/2004 00h00
Foi tudo muito rápido. Em janeiro, o último xá do Irã, um playboy com fama de dar as melhores festas do mundo, para qual eram convidados chefes de Estado, astros de Hollywood e pilotos de Fórmula 1, fugiu para o exterior. Em fevereiro, o líder da oposição, um religioso radical voltou do exílio, foi recebido em triunfo e assumiu o poder. Em abril, o país transformou-se, após um plebiscito, em uma república islâmica, adotando como base as leis fundamentadas no Alcorão. Depois disso, a história da região, uma das mais sensíveis em termos geopolíticos do planeta, jamais seria a mesma. A Revolução Islâmica ocorrida em 1979 no Irã levou ao poder um grupo de religiosos fundamentalistas com discursos e práticas antiamericanas e antiocidentais, que influenciou toda a região, acirrou antigas disputas com os vizinhos e gerou algumas das imagens que marcaram os anos 80 e 90. Hoje, 25 anos depois, quando o caldeirão aquecido pelas maiores reservas de petróleo do mundo volta a ferver, alimentado por uma intrincada sucessão política e pela ocupação de dois de seus vizinhos – Iraque e Afeganistão –, os olhos (e a memória) do mundo se voltam para lá.
Mas, até 1979 e durante o século 20, o Irã não havia sido um problema para o Ocidente. Pelo contrário, os governos iranianos haviam, em diferentes graus, cooperado e se aproximado de americanos, alemães, britânicos e russos. No início do século, quando se viviam os últimos anos da dinastia Qajar (1779-1925), os britânicos exploravam a maior parte do petróleo iraniano e o exército czarista (depois soviético), deslocava-se com freqüência (e liberdade) pelo território do país (ainda chamado Pérsia). Enfraquecido, o xá Ahmed, soberano desse rincão pobre e dependente, não resistiu a um golpe de Estado em 1921 e o líder rebelde Reza Kahn foi proclamado xá da Pérsia pelo Majlis (Parlamento).
O novo governante tinha dois objetivos. Um deles era modernizar o país, tomando o Ocidente como modelo. Chegou a proibir que homens usassem turbantes e as mulheres, o véu. Mas também promoveu importantes reformas nos sistemas educacional e judiciário, além de construir hospitais e ferrovias. O mais importante, contudo, era livrar-se da dependência estrangeira. Primeiro, Reza Khan mudou o nome do país de Pérsia, palavra de origem grega, para Irã, como os próprios habitantes o designavam. Depois, tirou das mãos dos estrangeiros tudo o que pôde, como os serviços de telégrafos e a emissão de dinheiro. O que não podia tocar com tecnologia própria, como a aviação comercial, negociou contratos mais vantajosos.
Ao mesmo tempo que tentava se afastar de soviéticos e ingleses, o xá se aproximou dos nazistas alemães, com quem tinha em comum o discurso nacionalista e anti-semita e de quem passou a importar tecnologia. Com a Segunda Guerra Mundial, o Irã foi invadido pelos soviéticos e britânicos e dividido em dois. Reza Khan foi afastado do poder e partiu para o exílio na África do Sul, onde morreu três anos depois. Em seu lugar, com o apoio dos aliados, assumiu seu filho Mohammed Reza (chamado de Reza Pahlevi), de apenas 20 anos.
Na década de 50, a ascensão do primeiro-ministro nacionalista, Muhammad Mossadeq, levou a uma crise sem precedentes, desencadeada, em 1953, quando ele decidiu estatizar as reservas de petróleo que estavam nas mãos dos ingleses. Mossadeq rompeu relações com a Grã-Bretanha, depois de descobrir que eles preparavam um golpe de Estado. O Parlamento apoiou o primeiro-ministro, concedendo-lhe poderes ilimitados. O xá, aliado dos britânicos, tentou demiti-lo, mas perdeu a queda-de-braço e foi obrigado a fugir do país.
Segundo o jornalista americano Stephen Kinzer, autor do recém-lançado All the Shah’s Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror (“Todos os Homens do Xá: um Golpe Americano e os Caminhos do Terror no Oriente Médio”, inédito no Brasil), foi nesse momento que os americanos resolveram intervir. “Um influente membro da CIA, Kermit Roosevelt, neto do presidente Franklin Roosevelt, foi enviado ao Irã com ordens para organizar um novo golpe. Ele subornou a imprensa para que trabalhasse contra Mossadeq. Rapidamente, 80% dos jornais do país estavam sob seu controle”, afirma Kinzer. “Membros do Parlamento, líderes religiosos e militares também foram aliciados e o primeiro-ministro foi preso.” O xá retornou ao país, o petróleo voltou às mãos estrangeiras e o Irã teve de pagar indenizações durante dez anos. O episódio marcou o início de um duradouro processo de influência do governo americano no Irã.
Na década de 60, o governo de Reza Pahlevi tornou-se mais ditatorial. Diante das críticas, ele iniciou uma campanha para eliminar seus opositores. Criou uma polícia política, a Savak, que tinha como método corriqueiro de interrogatório a tortura. Um dos descontentes era um proeminente acadêmico xiita, conhecido como aiatolá Ruhollah Khomeini. Filho de um antigo preso político do tempo de Reza Khan, Khomeini foi duas vezes para a cadeia naquela época. Na primeira, depois de criticar publicamente um acordo em que os americanos se encarregariam de reformar o exército iraniano. Na segunda, acabou expulso do país e instalou-se por algum tempo no Iraque.
Enquanto o xá levava uma vida de playboy com fama internacional, o país sofria com uma grave crise econômica. A classe média, que havia sido beneficiada durante o governo de seu pai, ressentia-se de sua falta de participação política e da proximidade do governo com os Estados Unidos. O aumento da repressão na década de 70 reforçou a oposição ao governo, unindo comunistas e radicais religiosos.
O pontapé inicial da revolução foi uma manifestação pró-Khomeini realizada em janeiro de 1978 na cidade de Qum, um popular centro religioso. Tropas do xá reprimiram o protesto, matando 70 pessoas. Do exílio, Khomeini ordenou que após 40 dias fossem realizadas cerimônias em memória dos mortos, como é tradição no país. Esses eventos, que passaram a se repetir a cada quarentena, se transformaram em protestos contra o governo e o Ocidente. O xá pediu para que o Iraque, do então aliado Saddam Hussein, expulsasse Khomeini, que foi parar na França. O governo impôs a lei marcial, o que só piorou as coisas. Seguiu-se uma greve geral que paralisou a economia do Irã.
Em janeiro, Reza Pahlevi fugiu do país e duas semanas depois, Khomeini voltou a Teerã, após 14 anos de exílio. Ele indicou o líder do moderado Movimento de Libertação, Mehdi Barzagan, para formar o novo governo. Em seguida, o povo foi às urnas e decidiu, em plebiscito, o novo sistema de governo: uma República Islâmica.
Para Hamid Dabashi, especialista em islamismo da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, o resultado era esperado. “Desde o início do século 19, com a influência das conquistas coloniais e manobras de britânicos, franceses e russos pelo mundo todo, os povos dominados resistiram seja com nacionalismo anticolonialista, em conjunto com socialismo ou formas variadas de teologias de libertação. Na América Latina, por exemplo, isso ocorreu sob inspiração de ideais cristãos. O mesmo vale para o Islã, que vem sistematicamente se transformando de uma religião medieval para uma idéia singular de resistência contra o colonialismo.”
O país que surgiu desse movimento contra o imperialismo, no entanto, não teve vida fácil. O seqüestro da embaixada americana (leia quadro na página 37) e a guerra contra o Iraque (1980-1988), na qual morreram 200 mil iranianos, colaboraram para manter a instabilidade. E o apoio (até mesmo financeiro) às milícias xiitas no Líbano durante a guerra civil (1975-1990) provocou o isolamento do Irã perante a comunidade internacional.
Os primeiros anos do novo governo xiita foram de turbulência interna. Partidos radicais tentaram assumir o controle do país. Mais de 7 mil militantes da oposição foram assassinados, e seitas consideradas heréticas, como a Bahai, proibidas. Durante os anos da guerra, a economia manteve-se estagnada. Após o cessar-fogo com o Iraque, em 1988, e a morte de Khomeini, no ano seguinte, o país retomou as exportações.
Em 1997, os iranianos mostraram sua insatisfação com os rumos que a revolução vinha seguindo e elegerem um aiatolá reformista, Mohammad Khatami. Mas o momento atual ainda não sugere estabilidade. Para Kinzer, a revolução pode servir de exemplo para os atuais insatisfeitos. “Ela ensina aos iranianos uma amarga, mas muito importante lição. É melhor pressionar por reformas com seja lá quais estruturas existirem que começar a engrenagem de uma revolução sem saber onde é que ela vai parar.”