quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Suméria


Quem vivia ali já não podia reclamar de nada sob o risco de levar bala. Também tinha que se virar sem remédios, aparelhos médicos ou comida – um embargo econômico assolava o país havia dez anos. Em março do ano passado, para piorar, o lugar foi invadido por todos os lados, teve suas cidades destruídas e quase 15 mil pessoas mortas, além de milhares de vítimas feridas. O Iraque foi o pior lugar do mundo em 2003 e talvez em toda a última década. Mas sua história nem sempre foi assim. Na mesma terra que recebeu as bombas daisy cutters americanas (as maiores e mais poderosas bombas não atômicas, que os militares americanos chamam ironicamente de “cortadoras de margaridas”), se assentam os restos da civilização mais esplendorosa do início dos tempos. O povo que criou a escrita, as primeiras técnicas de engenharia e cujas lendas e mitos estão repetidas em várias culturas posteriores, como a babilônica e hebréia.
Foram os sumérios que cravaram um fim nos 150 mil anos de Pré-História, com a invenção da escrita cuneiforme. Também inventaram o modelo de cidades, em um território que começava próximo ao centro do atual Iraque, onde hoje é Bagdá, e seguia em direção do sul até mar. Isso tudo entre 4000 a.C. e 1600 a.C, quando a Mesopotâmia, a região entre os rios Tigre e Eufrates, era marcada ora por tempestades de areia que se arrastavam por quilômetros, ora por regiões pantanosas e alagadiças. “Foi uma espécie de primeira revolução urbana da história”, diz Marcelo Rede, professor de história antiga da Universidade Federal Fluminense (UFF). As primeiras populações estabelecidas na planície da Mesopotâmia eram nômades ou seminômades.
“A passagem para a agricultura foi o passo fundamental para a sedentarização, e as cidades surgem como aglomerados de comunidades agrícolas”, afirma o professor. De um povo originariamente agrícola que precisava lutar contra a fúria da natureza, surgiu uma civilização urbana, com comércio desenvolvido e que primava pelos registros escritos. Sua estrutura social privilegiando o varejo gerou uma elite cercada por luxos e prestadores de serviço. As palavras dos membros dessa elite tinham tanta força que eles legitimavam seus documentos por meio de um objeto usado até hoje: os selos. Cilíndricos, eles eram cunhados em pedra e rolados em tabletes de argila.
Raízes da raiz quadrada
Como bons comerciantes, os sumérios foram bastante dedicados à matemática. Há registros de transações comerciais envolvendo crédito, empréstimo e pagamento de juros mesmo sem sistema de cunhagem de moedas. Os preços eram geralmente fixados em relação ao valor de metais como cobre e prata, trazidos de outras regiões. Os sumérios foram os precursores da tábua pitagórica, raízes quadradas e cúbicas, frações com numerador 1, pi com valor de 3, bem como do sistema sexagesimal, que originou conceitos usados até hoje, como a hora de 60 minutos e ângulo de 360 graus.
Toda essa matemática era usada para controlar as águas dos rios Tigre e Eufrates. Canais e barreiras eram construídos para controlar as cheias, o que também ajudava a facilitar a navegação e o abastecimento das cidades. Um desses canais partia da cidade de Hit e seguia paralelo ao Eufrates por quase 400 quilômetros. Ao contrário dos egípcios, que viam nas cheias do Nilo um benefício para o cultivo, os sumérios encaravam as inundações como uma maldição divina – uma delas pode ter criado a lenda bíblica do dilúvio (leia quadro na página 55). Esse medo de inundações provavelmente surgiu porque as cheias do Nilo aconteciam na época de germinação das sementes, ajudando a fertilidade do solo, enquanto na Suméria elas ocorriam sem data prevista e quase sempre perto da época da colheita. A força dos rios era usada até como tática militar: inundava-se uma cidade para dominá-la.
E nada era mais comum entre os sumérios que brigas. Guerras eram travadas não contra nações vizinhas, mas entre eles próprios. “As cidades sumérias eram sedes de reinos, cada qual com sua dinastia”, conta Rede. Independentes, os cidadãos de cada local aproveitavam para saquear o que havia de matéria-prima nas cidades vizinhas: faltava a eles um material que fosse diferente de argila. Metais e madeiras precisavam ser importados – muitas vezes eram obtidos por meio de um comércio não muito, digamos, honesto.
Por isso, um costume muito comum das cidades era o de erguer enormes muralhas de barro para proteger o núcleo urbano – os agricultores da periferia ficavam de fora dessa. As batalhas entre as cidades também acentuaram a escravidão. Viravam escravos os soldados e os moradores das cidades dominadas, bem como devedores e suas famílias e até mesmo filhos mal-educados. Para “aquietar” a rebeldia excessiva da prole, os pais podiam “alugar” seus rebentos como escravos durante um determinado período.
Mas o motivo mais importante para a guerra era religioso. Os sumérios acreditavam em uma grande quantidade de espíritos do mal ligados aos fenômenos da natureza. Tempestades de areia eram vinganças dos deuses. Inundações também. Guerras só poderiam ser movidas pelos deuses. A eles também era atribuída a nomeação do líder das cidades-estado, o lugal (“homem grande”). Mas em períodos expansionistas, com a dominação de outras cidades, havia normalmente um governador designado diretamente pelo lugal.
Rei estrangeiro
O separatismo sumério permaneceu na região até 2800 a.C., quando Etana, soberano da cidade de Kish, começou a unir diferentes núcleos sob um único comando. Ele inaugurou um período de tranqüilidade que culminou com a primeira dinastia de Ur, por volta de 2500 a.C., época conhecida por pax sumerica. Mas as cidades de Ur, Eridu e Kish nunca pararam de disputar o título de capital. Enquanto Lagash saía na frente por suas fortificações, importância econômica e por ser um canal de comunicação com o golfo Pérsico, sua maior adversária, Ur, a terra de Abraão, era temida por seu exército. Já Kish era o maior centro espiritual da Mesopotâmia: teria emergido ali o primeiro líder político e espiritual após a grande inundação dos rios Tigre e Eufrates, no século 4 a.C.
Por volta de 2430 a.C. a cidade de Umma, sob o comando de um príncipe chamado Lugalzaggheshi, conseguiu se sobrepor a Lagash e tomar Ur, Kish e Uruk, se expandindo até a região das atuais Síria e Palestina e formando um reino que contemplava também o povo acádio. Ele tomou poder em Lagash incitado pelo clero e burguesia, cansados das reformas sociais promovidas por Urukaghina, o líder de Lagash.
O monarca sumério que ficou mais famoso, porém, não veio de nenhuma dessas cidades. Em 2335 a.C., o acádio Sargão se aproveitou da fragilidade dos sumérios, gerada pelas guerras internas e por problemas na agricultura devido à salinização do solo, e tomou conta do território que se estende do Mediterrâneo ao mar da Arábia. Conhecido por ter uma alma impiedosa, ele instalou a capital em Agade, que pode ser a atual Bagdá, e organizou um exército com modernas estratégias militares. Sargão, como um Saddam Hussein, orgulhava-se de ser aquele que “não concede perdão a ninguém”.
Sua força deixou os sumérios em baixa até 2100 a.C. Pouco tempo antes, a Mesopotâmia foi invadida pelos gútios, que derrubaram Sargão, mas não conseguiram fincar raízes por ali. Foram expulsos pelo governador de Ur, Unamu, que aproveitou para conquistar boa parte das terras entre o Tigre e o Eufrates. A partir daí, os sumérios viveram um período de paz, em que a engenharia, a burocracia e as artes floresceram.
Mas nem todas as cidades se desenvolveram igualmente. Havia núcleos de pobreza e de revolta. Algumas, como Isin e Larsa, conquistaram sua independência, pois não aceitavam a pressão econômica aplicada aos agricultores. Os rebeldes crescem em número e em força e conseguem derrubar a maior parte do império, o que condena a civilização suméria – já miscigenada – ao desaparecimento na primeira metade do segundo milênio antes de Cristo. Seus costumes e religião foram adquiridos por outros povos em diversos pontos da Mesopotâmia.
É aí que está a importância dos sumérios hoje. Muito do modo sumério de pensar foi adquirido pelos hebreus e, a partir deles, foi parar na Bíblia. Um dos principais legados hebreus para a eternidade foi o pecado: a culpa era um conceito que não saía da cabeça dos sumérios. Uma mulher que morresse virgem ou de parto virava demônio. Essa noção atrapalhou até a medicina, um ponto fraco da civilização. Muitas doenças eram vistas como punição em relação a desvios de conduta ou más ações, e diagnosticadas a partir da confissão dos pecados. “Para os sumérios, a existência humana é uma decisão divina”, afirma o estudioso da UFF. “Os homens são criados para o trabalho e têm como função primordial servir e sustentar os deuses.” Pena que, nos bombardeios às terras do sumérios ano passado, o temor a Deus legado por eles não foi levado em conta.
 As primeiras letras
A escrita sumériaevoluiu pelo contatocom outros povos
A disputa entre egípcios e sumérios pela invenção da escrita é antiga. Atualmente os chineses também entraram na briga, cuja vitória deve levar muitos anos de estudos até ser alcançada. Independentemente de quem foi o precursor dos registros das palavras, o que se tem certeza é das diferentes motivações. Enquanto os egípcios fizeram seus primeiros garranchos pensando principalmente em louvar os deuses, os sumérios tinham como prioridade os registros comerciais e a administração das cidades. Na Mesopotâmia, a maneira de escrever evoluiu por meio da interação entre diferentes culturas e da miscigenação entre elas. De cerca de 2 mil registros pictográficos moldados ou representados em paredes e muros em meados do quarto milênio antes de Cristo, chegou-se a 590 símbolos representando letras, sílabas ou palavras escritas na horizontal por volta de 700 a.C.
“Atribui-se comumente a invenção da escrita cuneiforme, na Mesopotâmia, aos sumérios, embora não se tenha certeza absoluta dessa afirmação”, diz Emanuel Bouzon pesquisador e professor da Universidade Católica do Rio de Janeiro. “A escrita cuneiforme foi, no início, essencialmente pictográfica e é difícil detectar a língua que se expressa, exclusivamente, por meio de pictogramas. Somente mais tarde, quando passou ao estágio de escrita silábica, foi possível determinar a língua que a usava.” Segundo o professor Bouzon, o nome cuneiforme dado à escrita mesopotâmia vem de ”cunha”, o instrumento de bambu com que se gravavam os sinais na argila ainda mole. “Os textos eram lidos da esquerda para a direita e de cima para baixo.” O pesquisador explica que, antes dos registros nas tábuas de argila, eram moldados símbolos plásticos representando jarros de grãos, ovelhas, bois e até números. Essas gravações eram colocadas dentro de recipientes de argila.
Os símbolos passaram a ser grafados nos recipientes de comércio, que deram origem aos tabletes de argila usados por diversos povos da Mesopotâmia. Cada representação pictográfica correspondia a um som na língua suméria. Isso facilitou o uso dos sinais não apenas ao representar um objeto, mas como sílabas para compor palavras maiores. Estavam inventadas as letras. “Expressar-se silabicamente possibilitou, também, que o escriba sumério pudesse descrever as formas verbais, os pronomes, advérbios e outros elementos gramaticais, que não podiam ser expressos no estágio pictográfico.”
A técnica suméria, então, passou a se espalhar pelo Oriente Médio. “Os semitas que se estabeleceram na Mesopotâmia a partir de aproximadamente 2600 a.C. assumiram essa escrita para sua língua, e ela se prolongou até o século 7 a.C., no período neobabilônico. Foi durante os períodos neo-assírio e neobabilônico que a língua aramaica se tornou o veículo de comunicação e o alfabeto superou a escrita cuneiforme pela sua simplicidade”, diz Bouzon.