1.INTRODUÇÃO
Os mitos helênicos fornecem o elenco das paixões comuns que sempre empolgaram a humanidade, desde épocas distantes, até os dias atuais. Por isso, Édipo, Electra, Antígona, não são fantasmas de um passado ilusório e transato, mas continuam vivos, ao nosso lado, compondo o coro da realidade, repetindo-se continuamente no encadeamento que criaram, proporcionando a tônica desta persistente ansiedade, presente em força, equilíbrio, paciência e coragem. (...)
Se nas artes, na filosofia, na própria formação do ideal político de igualdade, a civilização helênica soube tão bem transmitir estes impulsos perante o mundo antigo, a nem tanto alcançaram os seus institutos de direito, notadamente no que diz com a área privada ou com aquela que trata dos elementos constitutivos da ordem judicial.
E, todavia, um simples esforço junto às fontes permitirá concluir que também nesse campo ocorreu profusa e animada elaboração jurídica, uma vez que a convivência social se achava arraigada à consciência ética e à índole do povo grego, aos seus hábitos, costumes. A célebre passagem de Aristóteles afirma que “o homem é, por natureza, um animal social” enquanto o que se afasta, desta forma de agir, “não conhece tribo, lei ou morada” (Política, I, 1, 1253a, nesta última parte remontando a Homero, Ilíada, IX, 63).
Sob tal enfoque, pois, o direito grego é de ser examinado em profunda consonância com a estrutura da pólis: se as cidades-estados, engastadas aos rebordos escarpados de um solo imperfeito, orgulham-se de suas características peculiares, da mesma forma, o pensamento jurídico como que brota das relações estabelecidas entre os seus cidadãos, voltados, todos, para um sentimento conjugado de justiça. Ugo Enrico Paoli, ao tratar do direito ático, deixa claro que, ao apreciá-lo, não basta limitar-se, apenas, ao estudo formal da lei e do quanto ela dispõe: é preciso ir mais além, saber qual a reação causada ao povo para o qual se dirigiu, saber quais os efeitos que causou, se realmente chegou a ser utilizada com proveito (Studi sul Processo Attico, Padova, Cedam, 1933, pp. 4 e 5). Tarefa típica do pesquisador, mas nem sempre fácil de executar.
2. FONTES DO DIREITO
É o que acontece quando da análise do direito grego, pois é certo que a maior parte de suas fontes acabou por se perder; e se assim foi, a precariedade de informações dificulta uma reconstituição completa e precisa a respeito de suas leis e instituições. Se diplomas estiveram reunidos, um dia, de modo a perfazer um corpo legal, nada disto chegou ao nosso tempo, da maneira como sucedeu em Roma, onde a doutrina e constituições imperiais viram-se coligidas e compiladas a mando de Justiniano. Por isso, lamenta-se Rodolphe Dareste, o pesquisador só tem à frente fragmentos esparsos ou fontes mediatas, sobrando-lhe elaborar, por indução, uma imagem incorreta do direito que à época se redigiu e se aplicou (Nouvelles Études d’Histoire du Droit, Paris, 1902, L.Larose, p. 60).
E quais são estas fontes? Em primeiro lugar, entre outros, trechos constantes das obras de Platão e Aristóteles, “As Leis” daquele, “A Política” e a “Ética à Nicômaco” deste; fragmentos das orações deixadas pelos retóricos, Demóstenes, Ésquines, Lísias, Antifonte. Mas, por isso mesmo, esbarra-se desde logo, no primeiro problema: não há como acolher por inteiramente verdadeiro o que ali se diz, já que os filósofos poderiam estar se referindo a uma sociedade hipotética, ideal, e não real, da qual participassem; assim, não se pode afirmar, com segurança, que as passagens porventura escolhidas, discorressem sobre a correspondente estrutura administrativa e judiciária do período; em mais de uma seqüência, aliás, verifica-se que estes autores usam a expressão “dever ser”, o que não significa dizer que “é”.
Por sua vez, os discursos proferidos pelos exímios oradores durante o calor dos debates nos tribunais, nem sempre estariam acompanhando, também, o originário espírito da lei; como a argumentação não se fazia para convencer juízes togados, mas jurados leigos, permitiam-se expedientes próprios da oratória, capazes de impressionar o público para o qual aquela se dirigia.
Ademais, embora sustentada em texto legal, a interpretação podia se afastar do critério aposto pelo legislador. Apenas como exemplo, verifica-se que em mais de uma passagem, Demóstenes assevera, enfaticamente, que a lei é clara, recusa toda ação quando já ocorridas a quitação e a desobrigação do compromisso anteriormente assumido (cf. “Contra Nausímacos e Xenopeitas”, 5; “Por Formion”, 25; “Contra Pantenetos”, 19). Mas, em todos estes processos, revestidos de certa complexidade, teria ocorrido a alegada quitação perante quem estava legitimado a fornecê-la? Ou, por outra, aplicar-se-ia aquela lei, cujo teor resulta claro na oração, à controvérsia em debate, ou teria havido uma interpretação distorcida de seu primeiro intuito? Talvez por isto Tucídides houvesse dito, com razão, que nem sempre seria lícito emprestar crédito a oradores, tanto quanto aos poetas... (“História da Guerra do Peloponeso”, 1, 21).
Mas, ao lado destas defesas circunscritas ao âmbito jurídico, é possível colher informações de valia nos textos literários em geral, tal como nas obras de Heródoto ou Xenofonte, e bem assim nas tragédias de Ésquilo, Sófocles, Eurípides; de forma mais expressiva ainda, nas comédias de Aristófanes, quando este retrata alguns momentos da sociedade ateniense, criticando e ridicularizando determinadas situações causadas pelas constantes crises que a abalaram; assim, por exemplo, na comédia “As vespas”, aponta as deturpações do sistema judiciário, ao tempo da guerra do Peloponeso: refugiados da campanha subsistiam praticamente de favor, à conta dos parcos óbolos que lhes propiciavam as funções de jurados, as quais, por natural, não se cumpriam com a esperada imparcialidade; assim como as vespas que emprestam o nome à peça, tais juízes ganhavam a vida à custa de picar e perseguir os cidadãos, de preferência os mais abonados, “servindo-se dos aguilhões de seu efêmero poder” (“As vespas”, fala de Filócleon, 1113).
Completando este repertório, resta lembrar a paliata romana, na qual as obras de Plauto e Terêncio, já por reproduzirem enredos extraídos de autores gregos, fornecem dados de interesse para a elucidação do direito que a estes correspondia, e não propriamente do de Roma.
3. DA FAMÍLIA À CIDADE-ESTADO
A família é o elemento constitutivo da cidade; e esta, por sua vez, diz-nos Fustel de Coulanges, representa “a associação religiosa e política das famílias e das tribos. (La Cité Antique , Paris, Hachette, 1905, p. 151)
Mas, assim como sucede com a família romana, a grega há de ser vista, também, sob dois enfoques: o primeiro, mais restrito, larário, reduzido ao marido e pai, à mulher, filhos, agregados, escravos; e o segundo, em sentido mais amplo, abrangendo todos os membros do mesmo grupo, descendentes de um ancestral comum, longínquo, na maioria das vezes, mítico.
Esta última comunidade, a gέnoV (guénos), atua nos dois ângulos, seja o religioso, pelo culto aos antepassados, seja o político, na discussão e decisão de seus interesses quotidianos: por isso, estes grupos degέnoV, fratrias (de frater, irmão) ou tribos, reúnem-se em assembléias, ditam normas de conduta, estabelecem os princípios fundamentais pelos quais irão administrar e regular seus direitos e deveres, visando à proteção e convivência pacífica dos que a integram. Subsistem na gέnoV (como na “gens” romana), estreitos laços de solidariedade familial.
Nesta seqüência, encontramos, o dέmoV (démos) designação que abarca tanto o território, quanto a população que o habita. E sem suprimir estes institutos, a evolução alcança finalmente a pόliV, a cidade, que lhes dá a necessária conformação política e unidade.
A cidade caracteriza-se por ser um tipo de organização adjungida ao centro urbano, mas que com este exatamente não se confunde; na verdade, envolve-o, vai além, para atingir a periferia, os aldeamentos vizinhos, eventualmente o porto. A cidade, vista como cidade-estado é, assim, uma comunidade de limites mais amplos do que os geográficos, tanto que composta pelos polίthV, cidadãos livres que ali habitam; goza de autonomia administrativa, política e econômica, circunstância que permite possa dar livre curso ao seu destino, estabelecendo legislação própria, regulamentando seus interesses de natureza interna e externa, exercendo poderes autônomos e de soberania.
Dois são os princípios que regem a cidade-estado, sem os quais ela não conseguirá alcançar o ideal da democracia: igualdade de direitos perante a lei, isonomia, e liberdade de conduta, eleutéria. Mas, liberdade, não significa fazer o que quiser, pois aquela há de vir definida, pelo que dispõe a lei (cf. palavras de Demátaros e Xerxes, Herodoto, “História”, 7, 104).
Se o homem não tem condições de se realizar a não ser que se associe e se organize em comunidade, esta é a razão de ser da cidade, a qual virá protegê-lo, e a sua família (Aristóteles, Política, 1253a), fornecendo-lhe estabilidade e segurança, com vistas à preservação dos princípios que a inspiram.
A estes dois direitos, acrescenta-se aquele pelo qual tem o cidadão a prerrogativa de expressar livremente o seu pensamento, expor sua queixa em público, no mesmo grau de igualdade da qual seus pares também dispõem: é a isegoria repetidamente afirmada na composição dos conselhos e tribunais colegiados.
4. ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E JUDICIÁRIA
O fundamento da democracia se apoia na soberania popular, expressa pela viva voz dos cidadãos, no exercício de suas funções públicas, no direito de haver assento e voto nos tribunais, na participação quotidiana de que desfrutam nas assembléias e conselhos.
No sentido de resguardar o equilíbrio entre a liberdade individual e o poder público, a atividade da cidade-estado desenvolve-se por meio de três órgãos coletivos principais, correspondentes, em princípio, e guardadas às devidas proporções, aos poderes executivo, legislativo e judiciário.
A Boulé ou Conselho dos Quinhentos, vinha composto por cidadãos escolhidos por sorte; em Atenas, cinqüenta de cada tribo. Cuidava de questões religiosas, financeiras, diplomáticas, militares. Seus membros, ao assumir o encargo, deviam jurar fidelidade às leis da cidade, não as contrariando e nem agindo em desacordo com os interesses da democracia. Redigiam e preparavam decretos, enviando-os à assembléia popular, para discussão e aprovação.
Entre outras atribuições, incumbiam-se, também, de controlar a atividade dos magistrados, por meio da docimasia (dokimasίa). Por outro lado, quando necessário, especialmente em casos urgentes, os membros do conselho que compunham a pritania, ou junta administrativa que periodicamente se revezava entre as tribos, expediam decretos para imediata aplicação.
As sessões eram públicas, mas não existia participação de outros cidadãos senão daqueles que compunham o corpo do Conselho.
Já a Eclésia, ('Ekklhsίa), ou assembléia popular, ao contrário, reunia cidadãos maiores de dezoito anos no pleno exercício de seus direitos políticos: aberta a todos que detivessem tais prerrogativas, possibilitava o concurso de centenas de membros, alternando-se a freqüência de acordo com a importância da matéria ou disponibilidade dos cidadãos, muitas vezes empenhados em seus afazeres no comércio, na messe, ou, ainda, aproveitando a oportunidade da estação propícia à navegação, onde o movimento no porto era sempre maior. Não se contavam, por igual, aqueles que residiam em sítio mais afastado, tudo isto levando, por conseqüência, a uma defasagem no número de seis mil participantes possíveis de exercerem o direito de voto.
Os assuntos englobavam matéria relativa à política externa, como tratados e alianças com cidades congêneres, recepção às embaixadas, ou temas de maior gravidade e urgência, como a declaração de guerra; e no tocante à administração interna, provisões e armazenamento de cereais, tributos, confisco de bens, ostracismo. Reunidos em local amplo, capaz de abrigar considerável população, - na Ágora, ou na colina de Pnix – de ordinário, procediam abertamente as votações, alçando uma das mãos; outras vezes, faziam-no em segredo, marcando a escolha em algum objeto, mais comumente, nas cidades litorâneas, na parte lisa das ostras. Daí a palavra ostracismo medida pela qual se votava o exílio de um cidadão, a bem do interesse público, por período que podia se estender até dez anos.
Outra sanção era a atimia, perda total ou parcial dos direitos civis: a total, dirigia-se aos condenados por crimes em geral, alguns graves, outros nem tanto; assim, o roubo, a corrupção, o falso testemunho, mas também as simples vias de fato e até a vadiagem ou a ociosidade. Quando parcial, ficava reduzida à restrição que a sentença determinara. Uma terceira possibilidade alcançava os devedores do erário: atuando mais como coerção do que pena, a princípio vigorava provisoriamente, até que solvido o pagamento. Persistindo a mora, convertia-se em definitiva, duplicando-se a dívida e se executando o débito, pelo confisco dos bens (cf. Pierre Lavedan, Dictionnaire Illustré de la Mythologie et des Antiquités Grecques et Romaines, verbete “atimie”, Paris, Hachette, 1931, p. 141)
Finalmente o Elieu ou Tribunal dos Heliastas, júri popular, composto de até 6.000 cidadãos, escolhidos por sorte, entre os que tivessem mais de trinta anos, e se colocassem à disposição da cidade para exercer estas importantes funções. As decisões emanadas deste órgão, justamente por constituírem a expressão da vontade e soberania popular, eram definitivas, não admitiam recurso algum; sua jurisdição e competência, estendia-se tanto às causas públicas como às privadas, embora não pareça fácil distinguir nos textos, às vezes, esta dicotomia, porque, em ambos os casos, o debate se iniciava entre as duas partes.
A par destes tribunais, compunha-se a organização judiciária de inúmeros magistrados, com atribuições definidas, entre os quais aqui resumidamente se enumeram: os tesmotetas, incumbidos de promover a revisão das leis e presidir os pleitos que envolviam interesses de ordem pública: os eisagogueis, juízes para as causas comerciais que exigiam pronta solução, restrita aos meses em que o Mediterrâneo não oferecia perigo à navegação e à carga transportada, e ainda para outras querelas que podiam conhecer decisão mais rápida.
Além destes, o demarca e o polemarca. O primeiro, era o principal magistrado do dέmoV, incluindo-se entre suas múltiplas funções aquela de zelar pelo cumprimento da justiça e em especial das sentenças proferidas nas questões postas entre as partes. Na verdade, cada cidadão estava inscrito no registro de seu dέmoV e o demótico adjunto a seu nome é que lhe dava a qualidade e o estado correspondente, de modo que, em princípio, era fácil localizá-lo, na hipótese de se pretender chamá-lo à juízo. Já o polemarca era o juiz que atendia às causas em que em pelo menos uma das partes não dispunha da condição de polίthV, era meteco, estrangeiro. Há uma passagem, em discurso proferido pelo orador Lísias (contra Pancleonte XXIII, 2) que retrata bem esta diferenciação: “Há muito que ele me importunava: fui ao local onde trabalhava e citei-o diante do polemarca, pois o acreditava meteco; todavia, alegou ser platense; perguntei-lhe: de que família? Isto porque um dos presentes me aconselhara a citá-lo, então, perante os juízes da tribo à qual pretendia pertencer. Respondeu-me: Dos decélios; citei-o, pois, diante dos juízes da tribo de Hipotontes”.
Como reforço e ilustração a respeito da importância que se emprestava às magistraturas administrativas e judiciárias da cidade-estado, segue a tradução, em forma livre, de duas referências constantes das obras de Aristóteles, respectivamente na “Política” e na “Ética à Nicômaco”; ambas, evidenciam que as preocupações ali existentes são as mesmas, mostram-se tão atuais como hoje em dia:
“... O primeiro cargo necessário é aquele que se refere ao mercado, para o qual deve haver uma magistratura que vigie os contratos e para que estes se executem regularmente; pois de uma maneira geral todas as cidades têm necessidade de comprar e vender para suprir suas necessidades... outro cargo é aquele que cuida dos edifícios públicos e privados da cidade, para que estejam em condições, conservando-os e reparando-os, assim como aos caminhos... outra magistratura registra os contratos privados e as decisões dos tribunais... e depois desta, talvez a mais necessária e difícil, entre todas, é a que se ocupa da execução das penas consignadas nesses registros... se é difícil pelos muitos ódios que possa acarretar, é necessária, porque de nada serve que se realizem processos para determinar o que é justo, mas não se executem as decisões ali proferidas...” (Política, 8, 8, 1321b e 1322a).
E no que diz respeito à responsabilidade e alcance do poder de decisão do juiz: “Por isso, sempre que há uma controvérsia, recorre-se ao juiz: ir ao juiz, significa ir à justiça, pois o juiz é como se fosse a imagem viva da justiça; ao restabelecer a igualdade, age como se, de uma linha cortada em partes desiguais, tira da maior a parte que excede, atando-a à parte menor... e quando o todo se divide entre duas partes iguais, costuma-se dizer que cada um tem o que é seu...” (Ética à Nicômaco, 5, 43, 1132, a).