terça-feira, 4 de novembro de 2014

O SURGIMENTO DO DIREITO NA GRÉCIA ANTIGA


1. O DIREITO NA GRÉCIA.
Para o estudo do Direito Grego é particularmente interessante o período que se inicia com o aparecimento da polis e vai até o seu desaparecimento e surgimento dos reinos helenísticos. Corresponde a um período de cinco séculos, denominado “época arcaica” e “período clássico”.
Em Atenas foi onde a democracia melhor se desenvolveu e o direito atingiu sua mais perfeita forma quanto a legislação e processo. É comum utilizar direito grego e direito ateniense como sinônimos. No entanto, deve-se observar que nem sempre são a mesma coisa.
Um dos fenômenos mais característicos da época arcaica foi o da colonização, prática que continuou durante muito tempo. Seja por motivos de excesso de população, secas ou chuvas em demasia, sempre que a polis tinha dificuldade em alimentar a população, decidia pelo envio de uma parte para outro lugar, com o objetivo de fundar uma colônia, a qual denominavam apokia (residência distante). Foi dessa forma que os gregos se espalharam pelo Mediterrâneo.
Tendo aparecido em meados do século VII a. C., a moeda foi logo adotada pelos gregos, contribuindo para incrementar o comércio e permitir a acumulação de riquezas. Com o aparecimento dos plutocratas como uma nova classe, a aristocracia perdeu o poder econômico, embora ainda mantivesse o poder político, que seria por ela controlado, contudo finalmente retirado com as reformas introduzidas pelos legisladores e tiranos.
A escrita surge como nova tecnologia, permitindo a codificação de leis e sua divulgação através de inscrições nos muros das cidades. Dessa forma, junto com as instituições democráticas que passaram a contar com a participação do povo, os aristocratas perdem também o monopólio da justiça.
Retirar o poder das mãos da aristocracia com leis escritas foi o papel dos legisladores. Coube-lhes compilar a tradição e os costumes, modifica-los e apresentar uma estrutura legal em forma de leis codificadas.
São de particular interesse dois legisladores atenienses: Drácon e Sólon. O primeiro fornece a Atenas o seu primeiro Código de leis, que ficou conhecido por sua severidade e cuja lei relativa ao homicídio foi mantida pela reforma de Sólon. Deve-se a Drácon a introdução de importante principio de Direito Penal: a distinção entre os diversos tipos de homicídio, diferenciando entre homicídio voluntário, homicídio involuntário e o homicídio em legítima defesa.
Sólon não só cria um Código de leis, que alterou o Código criado por Drágon, como também procede a uma reforma institucional, social e econômica. No campo econômico, Sólon reorganiza a agricultura, incentivando a cultura da oliveira e da vinha e ainda a exportação do azeite. No aspecto social, entre a s várias medidas, são de particular interesse aquelas que obrigavam os pais a ensinarem um ofício aos filhos; caso contrario, estes ficariam desobrigados de os tratarem na velhice; a eliminação de hipotecas por dívidas e a libertação dos escravos pelas mesmas e a divisão da sociedade em classes. Atrai também artífices estrangeiros com a promessa de concessão de cidadania.
Apesar de ter sido o berço da democracia, da filosofia, do teatro e da escrita alfabética fonética, a civilização grega tinha algumas características bastante particulares. Duas delas podem ter contribuído para o obscurecimento do direito grego ao longo da história. A primeira é a recusa do grego em aceitar a profissionalização do direito e da figura do advogado que, quando existia, não podia receber pagamento. A segunda é a de que preferia falar a escrever. Parece até um paradoxo que o povo que inventou a escrita desse primazia à fala.
A característica dos gregos de dar preferência à fala em detrimento da escrita era também reforçada pelas dificuldades que a escrita ainda apresentava, mesmo no século V a.C., com a disponibilidade e custo do material para escrita e produção de obras para consumo.
O que levou os gregos a utilizarem a nova tecnologia da escrita para escrever e publicar leis na forma de inscrições públicas tem sido motivos de controvérsias. A explicação até agora mais predominante tem sido a de que o povo grego, em determinado ponto da História, começou a exigir leis escritas para assegurar melhor justiça por parte dos Juízes. O propósito seria o de remover o conteúdo das leis do controle de um grupo restrito de pessoas e coloca-lo em lugar aberto, acessível a todos.
No entanto, entre as objeções a essa teoria está a falta de evidência de que as leis, antes dos legisladores, estivessem sob controle exclusivo de determinados grupos da sociedade. Uma coisa é grupos aristocráticos controlarem o processo judicial e outra é ter o controle do conhecimento das leis. As maiores inovações introduzidas pelos legisladores, nas novas leis escritas, era com respeito ao processo. Não há também evidências de que as leis escritas fossem mais justas que as anteriores; as evidências são, principalmente, quanto à preocupação das novas leis em reformular o sistema judicial.
Uma versão mais recente é a da utilização da nova tecnologia, a escrita, pela cidade, como um instrumento de poder sobre o povo. As leis escritas não colocaram em xeque e nem limitaram o poder de governantes e magistrados. Elas podem ter limitado a autonomia dos magistrados judiciais, mas o poder político absoluto, continuava intocável. Embora mais tarde, como foi o caso de Atenas, as reformas introduzidas no sistema legal tenham aumentado o poder do povo, inicialmente as leis visavam a beneficiar a polis e dessa forma fortalecer o poder do grupo que dominava a cidade, fosse ele qual fosse, e, principalmente, as leis eram inicialmente aristocráticas. Devem-se a Sólon as primeiras iniciativas de democratização das leis.
Com o crescimento das cidades, aumentavam as oportunidades de conflitos e conseqüentemente a necessidade de meios para sua solução pacífica. Como resposta às perturbações e agitações que se formavam, muitas cidades devem ter buscado na nova tecnologia da escrita uma forma de controle e persuasão. Embora já estivesse disponível por quase um século, a escrita somente foi utilizada em inscrições públicas para as primeiras leis por volta da metade do sétimo século antes de Cristo,
1.1. O Direito Grego Antigo.
As fontes das leis escritas gregas dividem-se em duas categorias: fontes literárias e fontes epigráficas.
Os gregos não elaboraram tratados sobre o direito, limitando-se apenas à tarefa de legislar (criação de leis) e administrar a Justiça pela resolução de conflitos (direito processual). Adicionalmente, devido a precariedade dos materiais de escrita utilizados na época (inscrições em pedra e madeira e textos escritos em papiro), um texto literário, filosófico ou lei escrita, somente chegaria aos nossos dias, não pela conservação do original, mas pelas contínuas reproduções e citações de autores posteriores.
Pode-se categorizar as leis gregas em crimes, família, pública e processual. A categoria denominada por crimes, que corresponderia ao nosso direito penal, inclui o homicídio que os gregos, diferenciavam entre voluntário, involuntário e em legítima defesa.
Classificadas como família, encontramos leis sobre casamento, sucessão, herança, adoção, legitimidade de filhos, escravos, cidadania, comportamento das mulheres em público etc.
Como leis públicas temos as que regulam as atividades e deveres políticos dos cidadãos, as atividades religiosas, a economia, finanças, vendas, aluguéis, o processo legislativo, relações entre as cidades, construção de navios, dívidas etc.
Algo notável no direito grego era a clara distinção entre lei substantiva e lei processual. Enquanto a primeira é o próprio fim que a administração da justiça busca, a lei processual trata dos meios e dos instrumentos pelos quais o fim deve ser atingido, regulando a conduta e as relações dos tribunais e dos litigantes com respeito à litigação em si, enquanto que a primeira determina a conduta e as relações com respeito aos assuntos litigados.
Um exemplo significativo de quão evoluído era o direito processual grego é encontrado no estudo dos árbitros públicos e privados. Trata-se aqui de duas práticas que se tornaram comuns, no direito grego, como alternativas a um processo judicial normal: a arbitragem privada e a arbitragem pública. A arbitragem privada era um meio alternativo mais simples e mais rápido, realizado fora do Tribunal, de se resolver um litígio, sendo arranjada pelas partes envolvidas que escolhiam os árbitros entre pessoas conhecidas e de confiança. Nesse caso, o árbitro (ou árbitros) não emitia um julgamento, mas procurava obter um acordo, uma conciliação, entre as partes. A arbitragem privada corresponderia a nossa moderna mediação.
Embora os gregos não estabelecessem diferença explícita entre direito público e direito privado, civil e penal, é no direito processual que se encontra uma diferenciação quanto à forma de mover uma ação: a ação pública e a ação privada. A ação pública podia ser iniciada por qualquer cidadão que se considerasse prejudicado pelo Estado, por exemplo, por ação corrupta de funcionário público. A ação privada era um debate jurídico entre dois ou mais litigantes, reivindicando um direito ou contestando uma ação, e somente as partes envolvidas podiam dar início à ação.
Exemplos de ações privadas: assassinato, perjúrio, propriedade, assalto, ação envolvendo violência sexual, ilegalidade, roubo.
Exemplos de ações públicas: contra oficial que se recusa a prestar contas, por impiedade, contra oficial por aceitar suborno, contra estrangeiro pretendendo ser cidadão, por registro falso etc.
No direito grego não havia magistrado que iniciasse um processo, não havia ministério público que sustentasse a causa da sociedade. Em princípio cabia à pessoa lesada ou a seu representante legal intentar o processo,fazer a citação, tomar a palavra na audiência, sem auxílio de advogado. A lei ateniense era essencialmente retórica. Não havia advogado, juízes, promotores públicos, apenas dois litigantes dirigindo-se a centenas de jurados.
Em Atenas a administração da Justiça foi mantida, tanto quanto possível, nas mãos de amadores, com efeito (e talvez também o objetivo) de permanecer barata e rápida. Todos os julgamentos eram aparentemente completados em um dia, e os casos privados muito mais rápidos do que isto. Não era permitido advogado profissional. O presidente da Corte não era um profissional altamente remunerado, mas um oficial designado por sorteio.
O direito a um julgamento por um júri formado por cidadãos comuns (em vez de pessoas tendo alguma posição especial e conhecimento especializado) é comumente visto nos estados modernos como uma parte fundamental da democracia. Foi uma invenção de Atenas.
O direito grego através de seus Tribunais formado por um júri composto de cidadãos comuns, cujo número chegava a várias centenas, era atividade que fazia parte do dia-a-dia da maioria das cidades gregas.
Na sociedade moderna, a administração da Justiça está nas mãos de profissionais especializados, os Juízes. Na Atenas clássica, a situação era o reverso. A heliaia era o tribunal popular que julgava todas as causas, tanto públicas como privadas, à exceção dos crimes de sangue que ficavam sob a alçada do areópago. Os membros da heliaia, denominados helialistas, eram sorteados anualmente dentre os atenienses. O número total era de seis mil e, para julgar diferentes causas, eram sorteados novamente para evitar fraudes. O número de heliastas atuando como júri em um processo variava, mas atingia algumas centenas. Para permitir que o cidadão comum pudesse participar como heliasta sem prejuízo de suas atividades, recebiam um salário por dia de sessão de trabalho.
As sessões de trabalho para julgar os casos apresentados eram chamadas dikasterias, e as pessoas que compunham o júri eram referidas como dikastas em vez de heliastas. Os dikastas eram apenas cidadãos exercendo um serviço público oficial, e sua função se aproximava mais da de um jurado moderno. A decisão final do julgamento era dada por votação secreta, refletindo a vontade da maioria.
A apresentação do caso era feita por discurso contínuo de cada um dos litigantes, interrompido somente para a apresentação de evidências de suporte, e era dirigido aos dikastas, cujo número poderia variar em algumas centenas, por exemplo 201 ou 501, por julgamento; o número total era sempre ímpar para evitar empate. A votação era feita imediatamente após a apresentação dos litigantes, sem deliberação. Não havia Juiz: um magistrado presidia o julgamento, mas não interferia no processo.
Os litigantes dirigiam-se diretamente aos jurados através de um discurso, sendo algumas vezes suportados por amigos e parentes que apareciam como testemunhas. O julgamento resumia-se a um exercício de retórica e persuasão. Cabia ao litigante convencer a maior parte de jurados e para isso valia-se de todos os truques possíveis. O mais comum, e que passou a ser uma das grandes características do direito grego, foi o uso de logógrafos, escritores profissionais de discursos forenses. Podemos considera-los como um dos primeiros advogados da história.
Apesar de ser requerido por lei que os litigantes apresentassem seus próprios casos aos jurados, era difícil cumprir essa lei, que aos poucos foi transformando-se em lei morta. O júri regularmente permitia que um parente, ou associado, auxiliasse um litigante. Alguns litigantes faziam uma breve introdução e solicitavam que um amigo o representasse.
Os logógrafos escreviam para seus clientes um discurso que este último deveria recitar como se fosse de sua autoria. Eles suprimiam sua própria personalidade e escreviam um discurso que parecesse o mais natural possível para o litigante cliente e desse a impressão de ser extemporâneo.
Por fim, vê-se que os gregos antigos não só tiveram um direito evoluído, como influenciaram o direito romano e alguns dos nossos modernos conceitos e práticas jurídicas: o júri popular, a figura do advogado, a diferenciação de homicídio voluntário, involuntário e legítima defesa, a mediação e a arbitragem, a gradação das penas de acordo com a gravidade dos delitos.