Por
mais de mil anos, os fenícios foram o shopping center ambulante da Antiguidade.
Se algo pudesse ser vendido, eles vendiam: vinho, azeite, móveis, joias,
ferramentas, armas, tecidos, peles, escravos e, por uma taxa especial, seus
serviços como os melhores marinheiros do mundo. Entre 1200 a 730 a.C., sua rede
conectava povos da Inglaterra até a Grécia e com ela também viajou sua grande
invenção: o alfabeto, que deu origem ao grego, latim, hebraico e árabe.
Os fenícios originais não eram muito de guerra – preferiam fundar colônias com
a permissão dos habitantes locais, sem avançar para o interior. Mas uma colônia
fenícia mudou tudo: Cartago se tornou um verdadeiro império, e por pouco não
pôs abaixo o futuro Império Romano. Como a criatura superou o criador e como
ambos foram varridos da História é o que veremos a seguir.
Fenício? Que fenício?
Originários do que é atualmente o Líbano, a própria geografia empurrou os
fenícios para o mar. A cadeia de montanhas que forma o monte Líbano limita a
habitação humana à costa. Ao sul e ao norte, impérios bloqueavam o caminho.
Partindo das cidadesestado de Tiro, Sidon e Biblos, as primeiras colônias foram
em ilhas próximas, como Chipre e Malta.
Aliás, não existia isso de “fenício” para os próprios fenícios. “A Fenícia não
existiu como entidade política unificada até os romanos fazerem uma província
com esse nome, milhares de anos depois”, afirma o historiador Richard Miles, da
Universidade de Sidney, na Austrália. O nome vem do grego e era um apelido: a
palavra phoinix quer dizer algo como “os roxos”, por causa de um dos seus
principais produtos, os tecidos tingidos de roxo. “Eles provavelmente chamavam
a si próprios de cananeus. Foram os gregos que os agruparam como fenícios”, diz
Miles.
Canaã designava mais que apenas as terras dos ditos fenícios, era toda a região
entre o sul da Síria e a Palestina, habitada também por outros povos, como os
hebreus e os filisteus – cuja história, de fato, se confunde com a deles. “Até
1200 a.C., não havia diferença entre a história das cidades do litoral e do
interior. Ou seja, nós temos uma civilização sírio-palestina, não fenícia. É só
com a independência das cidades-estado (que já existiam) que começa a história
fenícia propriamente dita”, afirmou o historiador italiano Sabatino Moscati
(1922-1997) em The Phoenicians (sem tradução).
O que fez surgir o comércio fenício foi o chamado colapso da Idade do Bronze,
que ocorreu por volta de 1200 a 1100 a.C.. Por motivos não muito claros,
grandes civilizações como egípcios, gregos micênicos e hititas entraram em
rápida decadência. O vácuo de impérios permitiu às cidadesestado uma
independência inédita, que propiciou o surgimento de sua rede comercial. No
começo, os fenícios ofereciam os produtos de sua própria região para os
vizinhos: madeira de cedro-do-líbano, o mesmo material do qual seus barcos eram
feitos, e tecidos pintados com extrato dos caramujos do gênero Murex, de um
púrpura belo e intenso.
Conforme novos povos entravam em sua rede comercial, os fenícios os
apresentavam a produtos de outros povos que conheciam. Assim eles passaram a
vender vinho grego aos egípcios, e papiro egípcio aos gregos – a palavra
“byblos” passou a significar “papiro” em grego por que eram os comerciantes de
Biblos que os supriam com o material. Com o tempo, “biblos” passou a querer
dizer também o conteúdo do papiro, isto é, o livro – daí as palavras biblioteca
e Bíblia.
Dependendo de remos quando o vento não ajudava, os navios fenícios não tinham
muita autonomia e faziam rotas próximas à costa, com paradas constantes. Assim,
eles estabeleceram mais de 300 colônias, normalmente meras vilas costeiras de
menos de mil habitantes. Essas vilas não eram possessões coloniais no sentido
moderno – eram estabelecidas com o consentimento dos moradores da região e não
tinham zona rural, dependendo dos locais para suprir-lhes alimentos. Era mais
um free shop que colônia, num modelo que os portugueses repetiram 2 mil anos
depois com suas feitorias asiáticas.
A grande exceção ao modelo fenício era Cartago, que tinha territórios no
interior, e passou a ser o entreposto principal. Localizada na atual Tunísia,
ficava no meio do caminho para as rotas que vinham da Espanha, e próxima da
Sardenha e Sicília.
O preço da paz
A independência e prosperidade vinham a um custo – em espécie. O método fenício
de sobrevivência era basicamente pagar pela paz. Sem um grande exército e sem
qualquer aliança durável entre as cidades-estado, eles sobreviviam por causa de
sua conveniência para os impérios vizinhos. Com a imensa fortuna de sua rede de
comércio, aplacavam a ira dos conquistadores com tributos. Assim eles
sobreviveram ao novo reino do Egito (1550-1069 a.C.) e o reino de Israel
(1030-930 a.C.), que os tornaram vassalos – “protegidos” mediante pagamento.
A paz fenícia aguentou até o Império neo-assírio (934-604 a.C.), que aceitou
seus acordos por alguns séculos. Na década de 730 a.C., no entanto, o rei
Tiglate-Pileser 3º invadiu e conquistou Tiro, então a cidade fenícia mais
próspera. Tiro não foi destruída, mas perdeu muito de sua autonomia. À
conquista dos assírios, se seguiriam a dos persas sob Ciro 1º (539 a.C.) e a dos
macedônios de Alexandre Magno (332 a.C.), que arrasaram a cidade. Nada restaria
da Fenícia original, exceto sua maior criação: Cartago.
Fundada em 814 a.C., Cartago começou a receber migrantes do Oriente Médio
conforme a situação piorava, e tornou-se independente em 650 a.C. Em 308 a.C.,
virou república. Cartago aprendeu uma lição com sua antiga metrópole: dinheiro
não podia comprar a paz indefinidamente. O Império Cartaginense venceu uma
série de guerras contra os gregos, entre 480 e 275 a.C. A última dessas
guerras, chamada Guerra Pírrica (280-275 a.C.), acabaria tendo um custo
inesperado. Ela tornaria seus aliados, os romanos, em inimigos mortais.
Cartago deve ser deletada
Os romanos saíram da guerra confiantes em sua capacidade militar, e menosprezando
a dos cartaginenses, que tiveram várias derrotas. Sob o pretexto de uma aliança
com um grupo de mercenários, os romanos declararam guerra a Cartago em 264
a.C., iniciando a 1ª Guerra Púnica. Roma venceria, ficaria com a Sicília, e
cobraria tributos. Para pagar tais impostos, os cartaginenses expandiram seu
domínio na Espanha pela via militar, tomando cidades dos celtas locais.
Um desses locais era Saguntum, cidade protegida por Roma. Assim começou a 2ª
Guerra Púnica (218-201 a.C.). Sob o comando de Aníbal Barca, e com o apoio de
aliados africanos, a guerra começou com um surpreendente ofensiva cartaginense
em que os exércitos cruzaram os Alpes com elefantes de guerra e impuseram
várias derrotas aos romanos. Mas a guerra se prolongou demais, e terminou em
outra derrota de Cartago, que perdeu a Espanha e se tornou um estado cliente de
Roma.
Os sentimentos de vingança pela quase derrota nunca foram esquecidos. A 3ª
Guerra Púnica (149-146 a.C.) foi simplesmente o massacre de Cartago. A frase
delenda est Cartago (Cartago deve ser destruída) vem dos discursos do senador
Cato para convencer os romanos a “deletar” a cidade. E deletada ela foi. A
população foi escravizada, a cidade, queimada, e a história dos fenícios,
apagada.
Quase tudo o que sabemos sobre eles vem dos gregos e romanos, porque seus
textos em papiro não resistiram a tantas depredações. Um fim tragicamente
irônico para o povo que inventou o alfabeto.
Grandes ideias, grandes
negócios
Para se tornarem os donos do Mediterrâneo, os fenícios fizeram uso de diversas
inovações, a maioria delas relacionada à tecnologia naval. Os navios de guerra
usados pelos romanos e gregos eram basicamente uma criação fenícia. Foi deles a
ideia de construir um navio a partir de um esqueleto posto numa doca seca, a partir
da quilha central, outra invenção sua. Seus navios foram os primeiros a ter
leme. Também foram eles que tiveram a ideia de distribuir os remadores em duas
linhas, criando a birreme, que depois ganharia mais uma linha, tornando-se a
trirreme. Esses eram navios de guerra, os remadores extras davam velocidade em
manobras de abalroagem, bater em outro navio para afundá-lo, que se tornou a
principal forma de guerra naval na época. Os navios de transporte usavam
principalmente velas. Mas a criação fenícia mais duradoura é o alfabeto, do
qual deriva o nosso. Usar letras para passar sons, e não ideias, como nos
hierogrifos, foi uma simplificação revolucionária.
Globalização antiga
A rede comercial dos fenícios abrangia desde a Inglaterra até a Grécia, país com
o qual concorriam no comércio, mas que também era um de seus maiores clientes.
O comércio era em grande parte escambo — trocavam os produtos locais pelo que
estivessem carregando. Na Espanha, montaram toda uma rede de beneficiamento de
metais, que se transformavam em joias e ferramentas em Tiro e Sidon.