Há 200 anos,
Napoleão foi protagonista de um dos maiores desastres da história militar. Viu
seu exército ser dizimado na Rússia e perdeu a fama de invencível. A campanha
foi o primeiro passo rumo ao fracasso da França napoleônica
Era um belo dia de
sol quando os soldados da França cruzaram o rio Neman, na atual fronteira da
Polônia com a Lituânia, aos gritos de "Vive l'Empereur!", na
confiança de serem o maior e mais temido exército que o mundo havia visto.
Estavam ali para dar uma surra, não para guerrear - o inimigo só tinha um terço
de suas forças e estava dividido. E, o mais importante, não tinha Napoleão como
líder. Eram 690 mil soldados de várias nacionalidades, dos quais só 300 mil
eram franceses. Os demais eram poloneses, austríacos, italianos, prussianos e
até 2 mil portugueses, recrutados entre simpatizantes do imperador. Como era
comum na época, seguia com eles um cortejo de comerciantes, prostitutas,
médicos e até esposas e filhos dos militares. Nem soldados, nem civis, nem
Napoleão poderiam imaginar àquela hora, mas apenas um em cada sete deles
voltaria vivo daquela campanha.
A Rússia não é para principiantes e
isso não era segredo para Napoleão e seus soldados. Pouco mais de um século
antes, em 1709, o rei Carlos 12, da Suécia, havia perdido seu exército na
Rússia de frio e fome. Por isso, o exército francês invadiu a Rússia no auge do
verão, em 24 de junho de 1812. E o verão foi seu primeiro inimigo. As
temperaturas frequentemente superam os 30 ºC, enquanto as noites duram apenas 3
horas - foi "aproveitando" esse sol todo que Napoleão fez seus
soldados marcharem 112 km nos dois primeiros dias da campanha. A essa
velocidade, as carroças de suprimento ficaram para trás. Desidratada pela
caminhada e sem alimentos e água, a tropa viu-se forçada a beber dos riachos
pantanosos da região, pegando diarreia. As primeiras vítimas tombaram ao lado
das fontes de água - e os soldados que vinham atrás também ficaram doentes.
A pressa era justificada pela
estratégia. "Napoleão não foi à Rússia para conquistar", diz o
historiador César Machado Domingues, editor da Revista Brasileira de História
Militar. Ele queria simplesmente aniquilar o exército russo e conseguir uma
aliança forçada com o czar Alexandre 1º. O primeiro alvo era a cidade de Vilna,
atual capital da Lituânia, onde estava o comando das tropas russas, inclusive o
czar. Napoleão entrou na cidade em 28 de junho, mas o comando russo havia se
mudado. Não só isso. Também haviam esvaziado armazéns e paióis de pólvora e
queimado plantações nos arredores.
Os franceses esperavam fazer o mesmo
que em suas guerras anteriores: tomar alimentos das cidades e fazendas pelo
caminho. O que sobrava da destruição russa só era aproveitado pelos soldados da
frente da coluna - quem vinha atrás passava fome. Um comércio clandestino e
gangues de ladrões passaram a agir. Os cavalos, que morriam às centenas, se
tornaram o prato principal.
A campanha prosseguiu assim - os
russos regredindo e queimando tudo, os franceses sangrando lentamente de
doenças, fome, sede, ataques de guerrilha e deserção massiva. "No caminho
para Moscou, ainda no verão, os franceses perdiam em média 6 mil soldados por
dia", escreveu o médico e historiador Achilles Rose (1839-1916) em seu
livro A Campanha de Napoleão na Rússia, Anno 1812.
Após mais uma conquista estéril na
cidade de Smolensk, em 18 de agosto, Napoleão decidiu rumar para Moscou. Mas
isso os russos não aceitariam e, enfim, Napoleão teve sua batalha. A mais
sangrenta de todas as guerras napoleônicas, a Batalha de Borodino, em 7 de
setembro - dos 250 mil participantes, 80 mil morreram. Os russos recuaram mais
uma vez, mas não foram aniquilados. Em 14 de setembro, Moscou pertencia a
Napoleão. "Napoleão deve ter imaginado que havia vencido", diz César
Domingues. Ele sentou-se no trono do Kremlin e esperou a rendição do czar. No
mesmo dia, começou um incêndio, que os russos jamais admitiram ter causado, que
destruiu 75% da cidade em 4 dias.
O tempo ia esfriando, o Exército
russo, se recompondo, e o czar não ofereceu paz. Em 18 de outubro, quando os
franceses iniciaram a retirada, a temperatura estava por volta de 0 ºC. O plano
era voltar pelo sul, mas os russos cortaram o caminho e os militares se viram
forçados a voltar por onde vieram, começando pelo campo de Borodino, crivado de
homens e cavalos em decomposição da batalha de um mês e meio antes.
Se algo havia sobrado da destruição
causada pelos russos, já havia sido consumido pelos franceses na ida. Diante de
um frio que chegaria a -40 ºC, ninguém tinha roupas de frio, exceto as roubadas
de Moscou - inclusive chapéus, sapatos, mantos e echarpes femininas. Os cavalos
não tinham ferraduras adaptadas ao gelo, como as dos russos - escorregavam e
quebravam as patas ou simplesmente não conseguiam puxar as cargas.
A tropa se converteu em um bando de
desesperados. Cavalos passaram a ser atacados e a carne era comida crua. Em seu
livro de memórias, o sargento Adrien Bourgogne relata que um carro-ambulância
teve seus cavalos devorados à noite pela tropa. De manhã, os feridos foram
largados no caminho. Os soldados também tiravam nacos de carne de animais ainda
vivos - amortecidos pelo frio, eles não reagiam. Bourgogne conta que um bando
de soldados havia se fechado em um celeiro para evitar o frio. Eles se
acumularam na porta para evitar que mais gente entupisse o lugar. Durante a
noite, o celeiro pegou fogo. Quando o incêndio acabou, alguns soldados tomaram
coragem de avançar para os corpos dos colegas, providencialmente
"assados". O soldado alemão Jakob Walters (1788-1864) escreveu que
viu um soldado que se aliviava de diarreia à beira da estrada ter suas calças
roubadas - a vítima morreu de frio horas depois.
Os franceses fugiam em desespero, mas
os russos não haviam se esquecido deles. Em 26 de novembro, as tropas
napoleônicas tiveram de atravessar o rio Berezina (na atual Bielorrússia). Os
russos descobriram sua posição e atacaram no dia 29, com 60 mil homens, contra
40 mil soldados divididos entre as duas margens. Os franceses conseguiram
escapar com seu imperador, destruindo as pontes improvisadas que haviam feito -
mas ainda havia muitos deles do outro lado. Entre 25 mil e 45 mil civis e
militares morreram ali - 10 mil deles empurrados pelos cossacos para dentro do
rio congelado.
Em 14 de dezembro, o esfarrapado
exército de Napoleão chegou à Polônia. Sua tropa principal tinha 22 mil
soldados, dos 690 mil que entraram na Rússia. O total de sobreviventes é cerca
de 100 mil, contando as outras colunas do exército. Pessoas, armas e cavalos
podiam ser substituídos, mas o dano irrecuperável foi à reputação de invencível
de Napoleão, que acabou deposto e exilado na ilha de Elba (Itália) em 1814.
Não foi apenas Napoleão que não
aprendeu com seus antecessores. Em 22 de junho de 1941, Hitler invadiu a União
Soviética, também esperando uma campanha fulminante que acabasse antes do
inverno. Os nazistas estavam às portas de Moscou em dezembro, mas então veio o
inverno, matando 150 mil alemães em poucos dias. Em homenagem aos serviços
prestados, os russos deram uma promoção a seu inverno. Lá ele é conhecido como
General Moroz - o temido General Inverno.
Bárbaros pelo czar
Os cossacos não costumam entrar na
conta do efetivo do Exército russo, mas como adicionais (costuma-se afirmar
algo como "100 mil soldados e 20 mil cossacos"). Na verdade, eles nem
são exatamente russos. Cossacos são sociedades independentes, democráticas e
militaristas, originalmente de povos eslavos, que depois passaram a aceitar
aventureiros de qualquer país - particularmente quem falasse línguas, soubesse
fazer contas ou simplesmente fosse alfabetizado, talentos raros entre os
nascidos entre eles. Os cossacos não eram súditos, mas aliados do czar - e se
voltaram contra os russos em algumas ocasiões, como a Revolta de Pugachev, de
1774. Suas tropas tinham sua própria hierarquia e generais. Mas elas eram um
tanto indisciplinadas, por isso os russos preferiam usá-los como forma de
bagunçar e aterrorizar as linhas inimigas, e não como força de choque ou
cavalaria regular. Os cossacos foram integrados à sociedade soviética à força
por Josef Stalin, na década de 30, mas os descendentes ainda se orgulham do passado
independente e aventureiro.