terça-feira, 7 de março de 2017

DIREITO HEBRAICO

Direito Hebraico
A base jurídica do povo hebreu se dá quase que completamente na torah, ou Pentateuco. Dentro da torah existem quase todas as prescrições que regem o direito na sociedade. Os livros do Pentateuco que expõem as leis são: Levítico e Deuteronômio, porém no Êxodo encontra-se talvez a obra-prima do Direito Hebreu e que até hoje em dia é usada pela Igreja Apostólica Romana: o Decálogo, ou seja, os dez mandamentos bíblicos. O corpo legislativo do Direito Hebreu se complementa com o Talmud e com os estatutos do Templo. O Talmud era um conjunto de regras e mandamentos transmitidos oralmente que fora colocado escrito em um documento. Há uma corrente teórica que afirma que Moisés não recebeu somente a tábua dos Dez Mandamentos no monte Sinai. Acredita-se que além do Decálogo, Moisés havia recebido de Deus, “a lei falada”. No início era proibido escrever a “lei falada”, pois deveria se adaptar a “lei falada” em todas as condições reais da vida em diferentes lugares e épocas. Acontece que depois da dispersão do povo judeu mundo afora, surgiu o medo que a lei se perdesse. Houve então um consenso em registrá-la por escrito em livros sagrados. Talmude, assim sua inscrição em português, significa “estudo”. O talmude possui leis, regras, preceitos morais, comentários e opiniões legais, como também inscrições históricas e lendas em seu conteúdo. Atualmente o Talmude é usado nas sinagogas como instrumento do Rabino para orientar os seus fiéis em situações concretas. Dentro da Torah há um sistema de divisão legislativa. A organização permeia de acordo com a seguinte ordenação: Código da Aliança (Ex 20,22-23, 19), Código Deuteronômico (Dt 12 – 26), Código da Santidade (Lv 17 – 26), “Decálogo Siquemita” (Dt 27, 15 – 26), “Decálogo Cúltico” (Ex 34) e o “Decálogo Ético” (Ex 20 e Dt 5). Conforme dito anteriormente, a obra-prima do Direito Hebraico é o Decálogo(Dt 5, 1 – 22). Os famosos “Dez Mandamentos”, considerados por Bóbbio “o código moral por excelência do mundo cristão”1. Esse ordenamento jurídico é considerado perfeito pelos operadores do Direito em todo mundo até hoje. De uma só carta o Decálogo proíbe, de imediato, as práticas de homicídio, roubo, falso testemunho, adultério, e a cobiça a qualquer coisa que pertença ao próximo. Diante disso, Carlos Mesters não se contém ao afirmar que o Decálogo se trata da verdadeira “constituição do povo de Deus”.2 A última fase legislativa da Torah é o livro Deuteronômio, que significa “segundas leis” e provavelmente foi escrito entre 1400 e 1300 a.C.. Trata-se da consolidação, ratificação dos livros anteriores (Gênesis, Êxodo, Números, Levítico) e prescreve a total destruição dos ídolos, condena os falsos profetas, especifica os animais limpos e os imundos, fala sobre deveres dos Juízes, preconiza sobre testemunhos, dispõe sobre penas corporais, regras para pesos e medidas, etc. Antes de começarmos o estudo sistemático das leis, é preciso dizer o quanto era importante para um judeu o cumprimento delas. Os rabis daquela época gostavam de apregoar junto com seus ensinamentos a seguinte passagem bíblica: “árvore plantada junto à corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto e cuja folhagem não murcha” 3, assim era o homem que praticava as leis. Conforme fora dito anteriormente, era verdadeiramente uma benção o cumprimento da lei. Para iniciarmos um pequeno estudo das leis hebraicas escolhemos uma lei que era costumeira na época, e que parece hoje em dia não estar mais em vigência em nenhuma sociedade moderna. Trata-se da lei do Levirato. O Pe. José Carlos assim comenta a lei do Levirato: Dt 25, 5 – 10 prescreve que o cunhado (levir) deve casar-se com sua cunhada, após a morte de seu marido, quando esta não tiver filhos homens. A finalidade principal dessa lei era impedir que desaparecesse o nome da família e se perdesse o direito sobre suas propriedades. Por isso, o filho que nascesse seria considerado filho e herdeiro do marido morto. O livro de Gênesis relata o episódio do Levirato entre Judá e Tamar (Gn 38). Essa lei existia ainda no tempo de Jesus. 4 A Lei do Levirato, também conhecida como “direito de resgate”, era muito comum para o homem hebreu, já que o mesmo não podia ficar sem descendências, pois isso era considerado hediondo para Deus. Havia costumes na região e naquela época deveras pitoresco para os dias atuais, como por exemplo, a Lei do Levirato, supracitada. Outro costume bastante curioso da época é a forma como se davam os juramentos. Todos nós sabemos que atualmente nos tribunais os juramentos se passam sobre a regência do Juiz e tendo a Bíblia como instrumento de veracidade e confiança dos testemunhos, pois na época de Moisés os juramentos eram feitos com as mãos debaixo dos órgãos genitais, que, para os homens hebreus, significava o mais respeitável sinal da personalidade humana. Comprovando a Lei do Levirato, mais uma vez percebemos a importância que se dava à filiação. Segurava-se a bolsa escrotal por entender que aquele órgão era o principal responsável pela vida humana. Antes de entrarmos densamente na enumeração e comentários a respeito das leis hebraicas, gostaríamos de comentar brevemente sobre o instituto da Advocacia. Os advogados costumavam trabalhar nas clepsydrae, recinto alojado nos templos forenses do império Romano. É bem verdade que os hebreus aprenderam muito com os advogados romanos. Os advogados eram pagos pelas horas que postulavam contra ou a favor nos litígios. Normalmente o advogado acusador possuía duas horas para apresentar o caso. Logo em seguida, os advogados de defesa tinham uma hora a mais. Em casos mais importantes, como assassinatos de romanos por hebreus ou judeus julgados por sedição, eram permitidas ao acusador seis horas e a defesa possuía nove horas para constituir a peça oral de refutação das evidências. Um dos advogados hebreus mais conhecidos era Simão. Conforme palavras históricas ele era conhecido como um jurista versado em todas as minúcias do Direito Hebraico. Um advogado que sabia argumentar como poucos, tanto na acusação como na defesa. Certa vez aceitou a defesa de um proprietário de terras que assassinou um ladrão no interior de sua propriedade domiciliar. Comenta-se que ele conseguiu a absolvição do acusado devido a tese de que o ladrão se aproveitara da noite para adentrar território particular, e à noite não havia luzes ou claridade que pudessem elucidar se o intruso estava armado ou não. Nos dias atuais seria a nossa legítima defesa putativa. Poderíamos afirmar que a divisão das leis hebraicas partia da seguinte organização: leis acerca de violência, leis acerca da propriedade, leis acerca dos crimes, e leis civis e religiosas. Escolhemos abordar, precipuamente, as leis que versavam sobre violência. Entendendo a violência como algo genérico na época, talvez não nos convenha conceituar violência por esse tempo, já que se tratava de uma cultura ímpar e muito arcaica. No rol das leis sobre violência, o livro de Êxodo desempenha importante papel, ele enumera no seu capítulo 21, desde seu versículo 12 ao 36, as regras sobre violência. Vejamos algumas: Êxodo 21 12. Quem ferir a outro do modo que este morra, também será morto; 14. Se alguém vier maliciosamente contra seu próximo, matando-o na traição, trá-lo-ás até mesmo do meu altar, para que morra. (Homicídio Doloso); 15. Quem ferir seu pai e/ou sua mãe, será morto; 16. Quem raptar alguém, e o vender, ou for achado na sua mão, será morto.(rapto e seqüestro); 18,19. Se dois brigarem, um ferindo o outro com pedra ou com punho, e o ferido não morrer, mas cair de cama, se ele tornar a levantar-se e andar fora apoiado seu bordão, então será absolvido aquele que o feriu; somente lhe pagará o tempo que perdeu e o fará curar-se totalmente. (Lesão corporal e Responsabilidade Civil); 22. Se homens brigarem, e ferirem mulher grávida, e forem causa de que aborte, porém sem maior dano, será obrigado a indenizar segundo o que lhe exigir o marido da mulher; e pagará como juízes lhe determinarem.(Responsabilidade Civil); 28,29. Se algum boi chifrar homem ou mulher, que morra, o boi será apedrejado, e não lhe comerão a carne; mas o dono do boi será absolvido. Mas se o boi dantes era dado a chifrar, e seu dono era disso conhecedor, e não o prendeu, e o boi matar homem ou mulher, o boi será apedrejado, e também será morto seu dono. (Responsabilidade Criminal); Existiam também as ordenações do Templo que faziam parte do Mischpat Ibri5. Essas ordenações eram conhecidas como Mishnah. Faziam-se identificadas e divulgadas pela sociedade judaica como um suporte das leis. A Mishnah 6.1 6.4 narra as especificações dos procedimentos de apedrejamento. A Mishnah 5. 1 – 4 dispõem sobre o testemunho. A Mishnah 7.4 preconiza sobre os crimes que devem ser punidos com o apedrejamento, que seriam: copular com a mãe, esposa do seu pai, nora, um outro homem, um animal. Condena também a mulher que copula com o animal. Há previsão também para o Idólatra, e o Blasfemo, o sodomita, o profanador do shabat (sábado), o que fornica com uma menina virgem. Essa Mishnah coíbe esses crimes por entender que o sujeito ativo conduz uma cidade toda à perdição. Adentraremos agora, no Direito Penal Hebreu. A lei penal hebraica creditava a todos os delitos como uma ofensa contra Deus. O mais grave dos delitos era a idolatria. O Direito Penal Hebreu previa sete espécies de penas capitais, e três espécies de penas temporárias. As penas capitais eram executadas por: Timpanamento: prendia-se o condenado em uma trave e em seguida batia-lhe com malhos e cacetes no abdômen. Era costumeiramente usado por gregos e romanos. Sufocação: enchia-se um buraco, ou uma torre, com poeira e cinzas, e logo em seguida arremessavam o condenado para o fundo, totalmente impregnado de poeira. Com isso a respiração era dificultada e o condenado morria por asfixia. Essa foi a pena imposta a Menelau, por ordem de Antíoco Eupator. Laceração das carnes: foi uma pena muito usada na época da monarquia. Era bastante conhecida entre cartaginenses e romanos. Decapitação: era a forma mais prescrita na época dos Juízes. Lapidação: constituía-se no método mais ordinário de execução entre os hebreus. Havia uma ordem que na ausência de especificação da execução, dever-se-ia usar a lapidação em qualquer crime. A lei doutrinava que as primeiras pedras fossem jogadas por testemunhas de acusação do julgamento, e, em seguida, o povo continuava arremessando-as até matar o condenado. A lei que regulava o apedrejamento era a Mishnah 6.1 6.4. Pena por fogo: são raras as vezes em que encontramos na história a execução por esse modo. Sabemos que era usada em delitos muito graves. Há menção em Levítico: 20,14; 21, 9 Morte pela espada: era usada cortando a cabeça do acusado ou lhe transpassando. Encontramos tal prescrição em Deuteronômio 20, 13. As penas temporais eram divididas em três espécies, conforme veremos: Flagelação: Jogava-se o culpado no chão ou amarravam-no em um tronco, aí era maltratado com varas. O Direito Hebreu não permite que ultrapasse a 40 varadas, circunstância que faz com que judeus apliquem 38 + 1, para que não errem a conta e maculem a lei. Já entre os romanos não havia limites, dependia exclusivamente do juiz ou do algoz. Prisão: apesar da prisão não ser muito usual entre os judeus, havia sim algumas prescrições para essa espécie de pena temporal. Moisés usou muito dessa pena na época que regia o povo judeu. O profeta Jeremias sofreu esta punição por ser muito zeloso e intrépido. Na modalidade prisão, vale ressaltar que os cárceres naquela região eram bem diferentes dos nossos atuais. Ernest Renan6 explica em seu livro como eram as prisões daquela época: A prisão não era isolada: o detento, com os pés presos por troncos, era vigiado num pátio ou em salas abertas, e conversava com todos os transeuntes. Existia naquela época, e entre os hebreus, uma modalidade de prisão conhecida como Prisão em cidades-refúgios. O acusado, após a ocorrência do homicídio (tinha que ser culposo) emprenhava fuga até uma cidade-refúgio. Chegando lá peticionava para os anciões responsáveis pelas cidades, que o escutavam e em uma espécie de conselho abrigavam o suplicante. Se o vingador do sangue derramado perseguisse o acusado, não poderia entrar, e o acusado lá permaneceria preso até o seu julgamento. O acusado ficava detido até a morte do sumo-sacerdote. Havia três cidades-refúgio, a Quedes, na Galiléia, Siquém e Quiriate-Arba( também chamada de Hebron). Escravidão: era muito prescrita na reparação dos danos. Como ressarcimento do dano vendia-se a pessoa como escrava. Eram as penas previstas para os condenados por crimes no Direito Hebraico. Contavam-se 36 crimes que eram condenados com a pena de morte. Havia 17 que eram condenados por lapidação, 10 condenados com a fogueira, 3 pela espada, e 6 pelo sufocamento. Passaremos a demonstrar agora os crimes, dividindo-os por secções. Crimes contra a pessoa: Homicídio culposo, homicídio doloso, lesões corporais – seguidas de morte, agressão mútua, agressão a escravo, aborto, opressão, lesão a escravos, lesões resultantes de culpa, resgate, maus-tratos e o crime de golpe baixo(mulher que agarra os testículos); Crimes contra o patrimônio: Roubo, furto, crime de dano, apropriação indébita, fraude, depositário infiel, agiotagem, sonegação de salário e seqüestro. Crimes contra os costumes: Rapto, estupro, prostituição, sedução, coito bestial, crime de abuso, atentado violento ao pudor, adultério, homossexualismo, relação sexual com escrava, relações sexuais com a filha e mãe, relações sexuais entre filhos e pais; Crimes contra a honra: Mentira, falsidade; Crimes contra a fé7: Feitiçaria, necromancia, crime de maldição, sacrifícios e oferendas a Deuses pagãos (paganismo), blasfêmia (o crime mais imperdoável do Direito Hebreu) e idolatria; Crimes contra a família: Desobediência filial, dissolução e profanação do leito paterno; Outros crimes: Falso testemunho, crimes in vigilando, crime de incêndio, crime de incitação a multidão, corrupção, suborno e adulteração de pesos e medidas. Esse é o elenco de crimes tipificados no Direito Penal Hebraico. Exporemos algumas leis que prescrevem estes crimes. Blasfêmia: o crime mais abominável do Direito Penal. O indivíduo podia praticar qualquer crime que sua família poderia velar sua memória. Entretanto, se praticasse o crime de blasfêmia, seria totalmente esquecido daquela sociedade. A condenação se dava pela lapidação. A história narra que todo cidadão judeu sentia prazer em jogar pedras em um blasfemo. Era uma total alforria no dia que havia um condenado a ser morto. A lei principal que preconizava a blasfêmia era a Mishnah 7.5; que lecionava a consumação do crime de blasfêmia quando a pessoa pronunciava o sagrado nome de Deus (Lahweh, Javé, YHWH) que só podia ser dito uma vez no ano em uma festa sagrada e pronunciado somente pelo Sumo-sacerdote. A Mishnah 7.4 prevê a execução da pena por apedrejamento. Na Torah encontram-se duas aplicações do crime de blasfêmia, em Levítico 24, 14: “Tira o que blasfemou para fora do arraial; e todos os que ouviram porão as mãos sobre a cabeça dele, e toda a congregação o apredejará”. Em Levítico 24, 16: “Aquele que blasfemar o nome do Senhor, será morto; toda congregação o apedrejará; assim o estrangeiro como o natural, blasfemando o nome do Senhor, será morto”. Gordon Thomas em seu livro faz um aprofundado estudo e explica: Uma vez que o sumo sacerdote identificasse um crime de blasfêmia ou adultério, este era punido pela pena capital de apedrejamento. O condenado era levado ao local da execução, um penhasco fora dos muros da cidade, especificando nos tratados como “da altura de dois homens”. Ali a pessoa amaldiçoada era forçada para a borda e subitamente empurrada para trás, de forma que a queda atordoasse a vitima ou quebrasse sua coluna.[..] os restos eram deixados para serem bicados pelos pássaros, como havia sido primeiramente determinado no livro de Deuteronômio.8 O crime de blasfêmia era assim punido, de acordo com os comentários de Gordon Thomas acima descritos. Outro crime bastante deplorável no seio judaico era o crime de paganismo. Na lei processual judaica era necessário o testemunho de duas pessoas para que se formalizasse uma acusação. O crime de paganismo era considerado tão hediondo que os sacerdotes do templo empregavam espiões para se infiltrarem na sociedade a fim de detectar os pagãos. Às vezes quando um homem queria desviar uma pessoa para proclamar outro Deus, faltava uma segunda testemunha para acusar a pessoa. Pensando nisso os sacerdotes espalharam esses espiões que viviam sempre próximos dos indícios. A Mishnah VII 10c versa sobre esse assunto mostrando o procedimento para apanhar em flagrante o pagão prosélito. Era recomendado que a pessoa que sofresse a proposta de adorar outro Deus se encontrasse novamente com o sedutor, mas agora com o espião por perto ou de trás de uma parede ou árvore. Com isso haveria duas testemunhas para ingressar com a acusação, e o fim, como sabemos, era a horrível dilapidação. O paganismo não só se consumava com a mudança de adoração a Deus, mas também em adentrar espaços pagãos como palácios romanos. Por isso a lei prescrevia a distância de sete passos entre o judeu e o pagão ou entre o judeu e o lugar pagão. Outro crime bastante hediondo na época era o crime de profanação do sábado, dia considerado sagrado entres os judeus. No sábado, como sétimo dia da semana era obrigatório o repouso e o cumprimento de algumas práticas. Acredita-se que Deus trabalhou e fez o mundo em seis dias, e no sétimo descansou. Uma das acusações contra Jesus era que ele havia profanado o sábado. Na obra de Gordon Thomas ele narra fragmentos do pensamento de Jesus sobre o sábado: Ele atacava constatemente essas restrições como dogmas sem finalidade. Onde estava o sentido, perguntava ele, de uma lei que dizia ser permitido para uma pessoa caminhar no sabbath dezenove quilômetros, e nem um metro a mais? Qual era a lógica que permitia que se escrevesse uma, mas não duas cartas nesse dia? Que base religiosa poderia haver em um regulamento que permitia uma dona de casa amarrar a corda em um balde, mas não tirar água do poço nas horas do Sabbath? Como seria justificável para um músico amarrar as pontas de uma corda quebrada em seu alaúde, mas não poder substituí-la; que o alimento pudesse ser comido, mas não preparado; que o vinagre pudesse ser usado para aliviar uma dor de cabeça, mas não ser cuspido? Como essas atividades cotidianas poderiam ofender a Deus em seu dia de descanso? Ele perguntava onde, nas Escrituras Sagradas, estavam as raízes dessas exigências. Jesus resumiu sua atitude em uma sentença memorável: “O Sabbath foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do Sabbath”9. Percebe-se nesta argumentação o que sentia Jesus a respeito do sábado. A principal lei que regulava o sábado e o que se podia fazer era a Mishnah Sabbat VII 2. Neste tratado faziam várias recomendações referentes ao cotidiano do sábado. Transcreverei uma parte encontrada no livro de Speidel: As principais atividades são quarenta menos uma: arar, semear, colher, fazer feixes, debulhar, joeirar e catar grãos; moer, peneirar, amassar e assar pão; tosar a lã, branqueá-la, fiar e tecer; esticar dois fios de tecer, trançar dois fios, dar e desatar um nó, dar dois pontos, rasgar um tecido com a intenção de dar dois pontos; caçar um veado, abatê-lo, tirar a pele, salgá-lo, curti-la, raspá-la, e cortá-la em pedaços; escrever duas letras; apagar o que está escrito com intenção de escrever duas letras; construir, demolir, apagar o fogo de um incêndio, atear fogo, bater com o martelo e levar uma coisa do lugar que está para outro. Estas são as principais atividades, quarenta menos uma. Essas eram as principais vedações para o sábado. Quem quer que as violassem era punido exemplarmente para manter a ordem entre a sociedade. Todos entendiam que a santificação do sábado era o segundo mandamento em importância. Existiam outros crimes, também considerados horrendos no ordenamento jurídico e social daquela época, como por exemplo: o falso testemunho, o suborno e a lesão corporal. O falso testemunho era castigado veementemente e sua tipificação se dá no capítulo 5 do livro Levítico11 da Bíblia Sagrada: “Se alguém for chamado como testemunha, mas não disser aquilo que viu ou que ouviu falar, então será culpado e merecerá castigo”. Sem esquecer é claro que se trata de um dos mandamentos do famoso Decálogo. Encontra-se em Êxodo12 capítulo XX, versículo 16, a premissa contra o falso testemunho. O suborno por sua vez era regido pelo livro de Deuteronômio que no capítulo XVI, 18, apregoava a punição ao suborno. Vale ressaltar que era totalmente vedado por leis aos juízes receber donativos ou presentes, pois assim agiriam diretamente contra “as malhas da justiça”. O dispositivo Non accipties personan, nec munera, era o que proibia o suborno. A lesão corporal também era vista como um comportamento nefasto para o povo. A lei punia a quem batesse em outrem, o dispositivo que regulava encontra-se em Levítico XXIV, 19. Foi um verdadeiro avanço no ordenamento e na estrutura da sociedade o reconhecimento da lesão corporal como crime, isto inibiu várias agressões a hiposuficientes, como os escravos e idosos. Falaremos agora sobre as leis processuais do Direito Hebraico. Abordaremos o processo de execução e de conhecimento. Falaremos sobre a hipótese do inquérito policial, a organização do poder judiciário da época e suas nuanças. Os hebreus não eram muito desenvolvidos em leis processuais. Não havia nenhuma teoria processual ou princípio que ditasse as normas rituais. Só havia duas regras processuais aplicáveis. A primeira se dá em relação ao número de testemunhas que se deve ter para iniciar um processo. Jamais uma pessoa podia ser condenada pela oitiva de uma só testemunha. Neste aspecto no livro de Deuteronômio encontramos: Uma única testemunha não é o suficiente contra alguém, em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado eu haja cometido. A causa será estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas. Quando uma falsa testemunha se levantar contra alguém, acusando-o de alguma rebelião, as duas partes em litígio se apresentaram diante de Lahweh, diante dos sacerdotes e dos juízes que estiverem em função naqueles dias. Os juízes investigarão cuidadosamente. Se a testemunha for uma testemunha falsa, e tiver caluniado seu irmão, então vós tratareis conforme ela maquinava tratar seu próximo. Deste modo extirpará o mal do teu meio, para que os outros ouçam, vejam, e fiquem com medo, e nunca tornem a praticar semelhante mal no meio de ti. Que teu olho não tenha piedade. (DT 19, 15 – 21)13 A segunda regra versava sobre a total apuração dos fatos antes do julgamento. Conforme leciona outra passagem de Deuteronômio: “deverás investigar, fazendo uma pesquisa e interrogando cuidadosamente”. (DT 13, 13 – 15) Neste aspecto processual lacunoso se pronuncia Rodrigo Freitas Palma: As leis processuais entre os hebreus eram raras. Como se vê, neste campo, os orientais achavam ser mais conveniente improvisar, do que estabelecer um rol de procedimentos jurídicos rígidos a serem por eles fielmente seguidos. A razão para tanto é muito simples. Devemos convir que nossas atuais preocupações com as regras e os ritos processuais são devidas ao legado romano. Para os judeus, contudo, os procedimentos não se constituíam na questão mais importante. 14 O processo de execução hebreu se dava por seis hipóteses. Entende-se aqui execução como um ato de sanar a dívida que o condenado tem com a sociedade ou com a vítima. As formas são: Vingador de sangue. Este modelo se dá na permissão que um agente da família da vítima possui para vingar a lesão sofrida. Execução bem primitiva. Pena capital. Apedrejamento, queima, eliminação15; Açoites até 40. Execução na frente do juiz. Exílio, nas cidades refúgios, até a morte do sumo sacerdote. Geralmente usada em crimes culposos. Decepamento do membro. Decepava-se a mão da mulher que agarrasse os testículos de um homem durante uma briga entre dois deles. Havia no Direito Processual hebreu uma espécie de inquérito policial dos nossos dias. Esse procedimento era conhecido como Hakirah, e tinha a fase investigativa (Derishah) e a fase do interrogatório (Bedikah) do indiciado. Esse procedimento era previsto pela Mishnah Sanhedrim 40a. Na fase processual penal havia uma espécie de defesa (contestação) que o acusado impetrava em seu auxílio para provar sua inocência. Era o famoso ordálio (prova de Deus). Era muito usado nos casos em que não havia provas e o acusado protestava sua inocência. O indivíduo que mais usava essa prova de inocência era a mulher acusada de adultério pelo marido. A prova se constituía na ingestão de uma água colhida numa tigela de barro e o sacerdote acrescentava um pouco de pó tirado da parte mais intima do santuário. O acusado que ingerisse o líquido e não sentisse nada em seu interior, ou que não ficasse com o ventre protuberante e nem os quadris flácidos, ficava livre de toda e qualquer atribuição criminosa. Mas se tivesse culpa no crime, Deus no alto de sua potência celestial enviaria uma doença grave para o acusado. Podemos perceber nessa prática o quanto eram arcaico e semi-selvagem os procedimentos processuais do Direito Hebraico. Quem processava, julgava, possuía a jurisdição? Abordaremos agora quem eram esses juízes aplicadores do Direito Hebraico. A necessidade de haver homens dotados de paciência e saber divino existiu desde a época de Abraão quando este junto com seu sobrinho Lot e sua mulher saíram em peregrinação pelo mundo. Criaram tribunais com número de dez homens eleitos por prazo determinado e escolhidos entre as tribos. Quatro mestres de religião e seis leigos. Eles não podiam ter menos de 25 anos e nem mais que 60. Com o passar do tempo e já com o comando de Moisés o povo judaico passou a ter juízes exclusivamente com papéis de resolver os litígios entre pessoas de uma tribo. Moisés, seguindo conselho de seu sogro Jetro, nomeou alguns homens devido ao assoberbamento de tarefas que possuía. Esta história está toda relatada em Êxodo, 18: 13-27. A proclamação oficial deste instituto “Juiz” foi ordenado por Deus em Números 11, 16: Lahweh disse a Moisés: “Reúne setenta anciões de Israel, que tu sabes serem anciões e escribas do povo. Tu os levarás à Tenda da Reunião, onde permanecerão contigo. [...] “Assim levarão contigo a carga deste povo e tu não a levarás mais sozinho. Já no final da saga Mosaica, no livro Deuteronômio, Moisés institui um novo modelo de tribunal. O tribunal passou a se chamar de Tribunal dos Três e existia em todas as cidades cuja população fosse superior a 120 famílias. Com a criação dos tribunais nasceu a necessidade de se criar uma corte suprema, que pudesse apreciar as questões em que os pequenos tribunais tropeçavam. Tal organismo foi nomeado de Sinédrio, em hebraico Sanhedrim, que quer dizer “sentados juntos”. Nas palavras de Durvalina de Araújo: “O Sinédrio, além de se comportar como Tribunal de terceira instância, julgava originariamente os profetas, os chefes militares, as cidades as tribos acusadas de rebeldia”.16 Esse tribunal encontrava-se situado no monte Sião, próximo ao Templo, num local conhecido como Lishkat HaGazit, “Câmara das Pedras Talhadas”. O Sinédrio era presidido por um Sumo Sacerdote, tinha como vice o Av Bet Din17, e a escolha do Sumo Sacerdote cabia ao rei. Marcus Borg em sua obra relata que Herodes nomeou e depôs sete sumos sacerdotes durante seus 33 anos de reinado.18 O Sinédrio se reunia periodicamente através de suas três câmaras, cada câmara com 23 membros. Normalmente se reuniam às terças e quintas-feiras para deliberarem questões da sociedade. Necessitava de 23 votos para se chegar a um hullika, veredicto de um caso não capital. Para pleitear um assento no Sinédrio era necessário um notável saber jurídico nos termos da Torá, possuir sabedoria, humildade, temor a Deus, indiferença a ganhos monetários, prezar pela verdade e amar o próximo, ser idôneo e ilibado, saber matemática e um pouco de outras religiões, ter boa aparência, ser perfeito fisicamente, possuir quarenta anos no mínimo, ter filhos e ser saudável na vida sexual. As questões apreciadas pelo Sinédrio aconteciam pela seguinte divisão: Dirimir querelas religiosas envolvendo assuntos pertinentes ao Templo; Analisar as questões criminais; Abrir diligências em torno de um cadáver descoberto; Apreciar e julgar casos de adultério; Estipular a tarifa do dízimo Organizar escrituras da Torá para serem lida pelo Rei e para o Templo; Criar o calendário; Apreciar as questões ritualísticas Essas eram as questões analisadas precipuamente pelo Grande Conselho dos Setentas ou Sinédrio. O acesso ao Sinédrio era totalmente vetado a estranhos. Nem os romanos podiam ingressar em lugares mais íntimos da grande câmara de julgamentos. Em Levítico 15, 31, disciplina o ingresso de pessoas impuras. Não podiam entrar com bengalas, sapatos, maletas ou com pés sujos. Toda essa fiscalização era feita pela Polícia oficial do Templo. Após esse completo apanhado sobre o Sinédrio, não poderíamos deixar de mencionar as palavras de Flávio Joséfo, o maior historiador judeu, sobre o Grande Sinédrio: “São ambiciosos, ladrões, soberbos e amantes da violência.”19 Logo o Sinédrio que deveria ser a sentinela da mais avançada moralidade do Direito, creditados por muitos como a espada de Salomão sobre a ilegalidade, e o escudo de Davi dando guarida ao desamparado. Neste grande Sinédrio duas personagens se mostraram de acordo com que Josefo pregou. Anás e Caifás. A etimologia do nome em nada se confirmava com a pessoa. Anás, em grego Hannas, quer dizer “compassivo” ou “misericordioso”. Anás passou longe de ser isso. Anás foi sumo sacerdote de Jerusalém de 6 a 15 d.c. Nascido de família de sacerdotes ricos e influentes, teve cinco filhos sacerdotes e seu genro Caifás como sucessor. Segundo Kurt A. Speidel “Foi ele quem insistiu e pressionou para o etnarca Arquelau fosse deposto do cargo. Foi ele quem advogou a entrega do poder a Roma”.20 O mesmo Speidel afirma que Anás deteve os mais altos postos do Templo, todos os funcionários importantes eram seus familiares, desde de superintendentes a tesoureiros. Ele indaga a possível participação de Anás nos lucros e vendas dos animais do Templo. 21 Por sua vez André Santos Novaes comenta: Nesse universo tumultuado, a figura de Anás, oculta nas sombras de Jerusalém, manobra os fios da política judaica interna. Anás, como todo homem poderoso e munido de grandes interesses econômicos, não pode deixar de defender-se, nem permitir que seu patrimônio se esvaia, já que o tem aumentado cada dia, até ganhando com a venda dos animais para o sacrifício e de outras formas que se possa imaginar de ganho e lucro.22
No ano 15 de nossa Era, Valério Graco então procurador, o destituiu do cargo de sumo sacerdote. Após três anos o seu genro Caifás, assenta-se no trono de Sumo Sacerdote. Anás mesmo assim inconformado não desiste de possuir poder e se auto-intitula de “Presidente de Honra do Sinédrio”, na sua cabeça nada podia ser resolvido sem lhe consultarem. José Caifás, genro de Anás assume o posto de Sumo Sacerdote no ano 18 depois de Cristo. Ocupa a posição com o dever de vigiar e primar pelo cumprimento reto da Lei, representando assim a figura suprema do povo judeu. O ocupante legal do máximo cargo nacional e religioso. O Sumo Sacerdote era louvado por sua dignidade, fama e pelo seu caráter sacrossanto. Caifás era o Sumo Sacerdote a época do julgamento de Cristo, e foi sua figura parda que deu andamento ao julgamento hebraico. Anás, como sua reputação sempre pregou, foi incompetente, arredio, cruel e bestial ao participar do julgamento mesmo como coadjuvante.