domingo, 3 de março de 2013

Os fenícios e sua importância para o comércio



Por mais de mil anos, os fenícios foram o shopping center ambulante da Antiguidade. Se algo pudesse ser vendido, eles vendiam: vinho, azeite, móveis, joias, ferramentas, armas, tecidos, peles, escravos e, por uma taxa especial, seus serviços como os melhores marinheiros do mundo. Entre 1200 a 730 a.C., sua rede conectava povos da Inglaterra até a Grécia e com ela também viajou sua grande invenção: o alfabeto, que deu origem ao grego, latim, hebraico e árabe.

Os fenícios originais não eram muito de guerra – preferiam fundar colônias com a permissão dos habitantes locais, sem avançar para o interior. Mas uma colônia fenícia mudou tudo: Cartago se tornou um verdadeiro império, e por pouco não pôs abaixo o futuro Império Romano. Como a criatura superou o criador e como ambos foram varridos da História é o que veremos a seguir.



Fenício? Que fenício?

Originários do que é atualmente o Líbano, a própria geografia empurrou os fenícios para o mar. A cadeia de montanhas que forma o monte Líbano limita a habitação humana à costa. Ao sul e ao norte, impérios bloqueavam o caminho. Partindo das cidadesestado de Tiro, Sidon e Biblos, as primeiras colônias foram em ilhas próximas, como Chipre e Malta. 

Aliás, não existia isso de “fenício” para os próprios fenícios. “A Fenícia não existiu como entidade política unificada até os romanos fazerem uma província com esse nome, milhares de anos depois”, afirma o historiador Richard Miles, da Universidade de Sidney, na Austrália. O nome vem do grego e era um apelido: a palavra phoinix quer dizer algo como “os roxos”, por causa de um dos seus principais produtos, os tecidos tingidos de roxo. “Eles provavelmente chamavam a si próprios de cananeus. Foram os gregos que os agruparam como fenícios”, diz Miles.

Canaã designava mais que apenas as terras dos ditos fenícios, era toda a região entre o sul da Síria e a Palestina, habitada também por outros povos, como os hebreus e os filisteus – cuja história, de fato, se confunde com a deles. “Até 1200 a.C., não havia diferença entre a história das cidades do litoral e do interior. Ou seja, nós temos uma civilização sírio-palestina, não fenícia. É só com a independência das cidades-estado (que já existiam) que começa a história fenícia propriamente dita”, afirmou o historiador italiano Sabatino Moscati (1922-1997) em The Phoenicians (sem tradução).

O que fez surgir o comércio fenício foi o chamado colapso da Idade do Bronze, que ocorreu por volta de 1200 a 1100 a.C.. Por motivos não muito claros, grandes civilizações como egípcios, gregos micênicos e hititas entraram em rápida decadência. O vácuo de impérios permitiu às cidadesestado uma independência inédita, que propiciou o surgimento de sua rede comercial. No começo, os fenícios ofereciam os produtos de sua própria região para os vizinhos: madeira de cedro-do-líbano, o mesmo material do qual seus barcos eram feitos, e tecidos pintados com extrato dos caramujos do gênero Murex, de um púrpura belo e intenso.

Conforme novos povos entravam em sua rede comercial, os fenícios os apresentavam a produtos de outros povos que conheciam. Assim eles passaram a vender vinho grego aos egípcios, e papiro egípcio aos gregos – a palavra “byblos” passou a significar “papiro” em grego por que eram os comerciantes de Biblos que os supriam com o material. Com o tempo, “biblos” passou a querer dizer também o conteúdo do papiro, isto é, o livro – daí as palavras biblioteca e Bíblia.

Dependendo de remos quando o vento não ajudava, os navios fenícios não tinham muita autonomia e faziam rotas próximas à costa, com paradas constantes. Assim, eles estabeleceram mais de 300 colônias, normalmente meras vilas costeiras de menos de mil habitantes. Essas vilas não eram possessões coloniais no sentido moderno – eram estabelecidas com o consentimento dos moradores da região e não tinham zona rural, dependendo dos locais para suprir-lhes alimentos. Era mais um free shop que colônia, num modelo que os portugueses repetiram 2 mil anos depois com suas feitorias asiáticas.

A grande exceção ao modelo fenício era Cartago, que tinha territórios no interior, e passou a ser o entreposto principal. Localizada na atual Tunísia, ficava no meio do caminho para as rotas que vinham da Espanha, e próxima da Sardenha e Sicília.

O preço da paz

A independência e prosperidade vinham a um custo – em espécie. O método fenício de sobrevivência era basicamente pagar pela paz. Sem um grande exército e sem qualquer aliança durável entre as cidades-estado, eles sobreviviam por causa de sua conveniência para os impérios vizinhos. Com a imensa fortuna de sua rede de comércio, aplacavam a ira dos conquistadores com tributos. Assim eles sobreviveram ao novo reino do Egito (1550-1069 a.C.) e o reino de Israel (1030-930 a.C.), que os tornaram vassalos – “protegidos” mediante pagamento.

A paz fenícia aguentou até o Império neo-assírio (934-604 a.C.), que aceitou seus acordos por alguns séculos. Na década de 730 a.C., no entanto, o rei Tiglate-Pileser 3º invadiu e conquistou Tiro, então a cidade fenícia mais próspera. Tiro não foi destruída, mas perdeu muito de sua autonomia. À conquista dos assírios, se seguiriam a dos persas sob Ciro 1º (539 a.C.) e a dos macedônios de Alexandre Magno (332 a.C.), que arrasaram a cidade. Nada restaria da Fenícia original, exceto sua maior criação: Cartago.

Fundada em 814 a.C., Cartago começou a receber migrantes do Oriente Médio conforme a situação piorava, e tornou-se independente em 650 a.C. Em 308 a.C., virou república. Cartago aprendeu uma lição com sua antiga metrópole: dinheiro não podia comprar a paz indefinidamente. O Império Cartaginense venceu uma série de guerras contra os gregos, entre 480 e 275 a.C. A última dessas guerras, chamada Guerra Pírrica (280-275 a.C.), acabaria tendo um custo inesperado. Ela tornaria seus aliados, os romanos, em inimigos mortais.

Cartago deve ser deletada

Os romanos saíram da guerra confiantes em sua capacidade militar, e menosprezando a dos cartaginenses, que tiveram várias derrotas. Sob o pretexto de uma aliança com um grupo de mercenários, os romanos declararam guerra a Cartago em 264 a.C., iniciando a 1ª Guerra Púnica. Roma venceria, ficaria com a Sicília, e cobraria tributos. Para pagar tais impostos, os cartaginenses expandiram seu domínio na Espanha pela via militar, tomando cidades dos celtas locais.

Um desses locais era Saguntum, cidade protegida por Roma. Assim começou a 2ª Guerra Púnica (218-201 a.C.). Sob o comando de Aníbal Barca, e com o apoio de aliados africanos, a guerra começou com um surpreendente ofensiva cartaginense em que os exércitos cruzaram os Alpes com elefantes de guerra e impuseram várias derrotas aos romanos. Mas a guerra se prolongou demais, e terminou em outra derrota de Cartago, que perdeu a Espanha e se tornou um estado cliente de Roma.

Os sentimentos de vingança pela quase derrota nunca foram esquecidos. A 3ª Guerra Púnica (149-146 a.C.) foi simplesmente o massacre de Cartago. A frase delenda est Cartago (Cartago deve ser destruída) vem dos discursos do senador Cato para convencer os romanos a “deletar” a cidade. E deletada ela foi. A população foi escravizada, a cidade, queimada, e a história dos fenícios, apagada.

Quase tudo o que sabemos sobre eles vem dos gregos e romanos, porque seus textos em papiro não resistiram a tantas depredações. Um fim tragicamente irônico para o povo que inventou o alfabeto.

Grandes ideias, grandes negócios

Para se tornarem os donos do Mediterrâneo, os fenícios fizeram uso de diversas inovações, a maioria delas relacionada à tecnologia naval. Os navios de guerra usados pelos romanos e gregos eram basicamente uma criação fenícia. Foi deles a ideia de construir um navio a partir de um esqueleto posto numa doca seca, a partir da quilha central, outra invenção sua. Seus navios foram os primeiros a ter leme. Também foram eles que tiveram a ideia de distribuir os remadores em duas linhas, criando a birreme, que depois ganharia mais uma linha, tornando-se a trirreme. Esses eram navios de guerra, os remadores extras davam velocidade em manobras de abalroagem, bater em outro navio para afundá-lo, que se tornou a principal forma de guerra naval na época. Os navios de transporte usavam principalmente velas. Mas a criação fenícia mais duradoura é o alfabeto, do qual deriva o nosso. Usar letras para passar sons, e não ideias, como nos hierogrifos, foi uma simplificação revolucionária.

Globalização antiga

A rede comercial dos fenícios abrangia desde a Inglaterra até a Grécia, país com o qual concorriam no comércio, mas que também era um de seus maiores clientes. O comércio era em grande parte escambo — trocavam os produtos locais pelo que estivessem carregando. Na Espanha, montaram toda uma rede de beneficiamento de metais, que se transformavam em joias e ferramentas em Tiro e Sidon.

A poucos quilômetros de Túnis, capital da Tunísia, o taxista entrou à esquerda. Foi subindo a encosta de uma colina em cujo cume ergue-se uma igreja. Sim, em pleno país muçulmano, os franceses construíram em 1890 a basílica de São Luís. O carro parou na entrada da antiga acrópole de Byrsa, onde várias civilizações deixaram sua marca. Lá do alto contempla-se o Mediterrâneo. Aqui estão as ruínas da mítica Cartago, que um dia foi centro de uma das civilizações mais poderosas do planeta e chegou a ter mais de meio milhão de habitantes.
Como a maioria das grandes cidades do mundo antigo, o nascimento de Cartago está envolto em mitos e lendas. A cidade teria sido fundada por uma princesa chamada Elisa, também conhecida como Dido. Seu irmão, o rei Pigmaleão da cidade fenícia de Tiro, no Líbano (814-813 a.C.), assassinara o tio, Acherbas, sacerdote do templo de Astarté – a deusa fenícia da fertilidade. A briga interna pelo poder levou Elisa a fugir junto com sua irmã rumo à ilha de Chipre, onde conheceram outro sacerdote de Astarté que a elas se juntou com mais 80 mulheres que se dedicariam a fazer sexo com viajantes e outros homens para garantir o povoamento das novas terras.
Os fugitivos aportaram no norte da África, onde Elisa negociou com os nativos seminômades que habitavam a região (líbios da tribo dos maxios) a posse de terras para instalar o seu pequeno grupo. Segundo a lenda, a princesa só poderia ocupar o terreno que cobrisse com uma pele de boi. Astutamente – os fenícios sempre tiveram a fama de fazer bons negócios – Elisa cortou a pele em tiras muito finas e rodeou com elas uma colina chamada Byrsa (em grego, “pele de boi”). O fim de Elisa, ou Dido, no entanto não foi feliz: Yarba, um líder local, se apaixonou pela jovem donzela e a obrigou a casar-se sob ameaça das armas; contrariada, ela se lançou às chamas e acabou com a própria vida. Essa história foi contada, pela primeira vez, por Justino, historiador romano do século 1 a.C., um dos grandes autores clássicos.
Historicamente, porém, a fundação de Cartago marca o fim do período de “inocência” dos fenícios, que, até então, ocupavam uma estreita faixa de terra na Síria atual, entre a margem do Mediterrâneo e as montanhas do Líbano. “Eles estavam ali havia 3 mil anos, organizados em forma de clãs, e mantinham postos comerciais em territórios vizinhos, com os quais tinham relações quase sempre amistosas”, afirma a arqueóloga Karin Mansel, do Instituto Arqueológico Alemão, que integra, atualmente, um dos projetos de escavação em Cartago. Por volta de 1000 a.C., no entanto, os fenícios organizaram uma poderosa federação entre as cidades-estados e, tendo Tiro à frente, iniciaram um processo de expansão sem precedentes. Eles já dominavam a metalurgia, fabricavam ligas de ouro e outros metais, eram excelentes para fazer armas, objetos de vidro e cerâmica.
Além disso, praticamente monopolizavam o comércio de algumas das matérias-primas mais valorizadas da época como marfim, pedras preciosas e púrpura, um pigmento extraído de moluscos utilizado para tingir tecidos (daí vem, inclusive, o nome grego pelo qual são conhecidos até hoje: phoini – a raiz da palavra fenício, em grego, significa “vermelho”). Mas eles se destacavam, sobretudo, pela sua numerosa e proeminente frota naval. Era natural, portanto, que sua expansão fosse predominantemente marítima. Eles conquistaram ilhas ao sul da península itálica e portos em toda a costa do Mediterrâneo. No norte da África, o controle sobre a matéria-prima, o aumento da produção e, principalmente, a localização privilegiada fizeram com que a importância de Cartago – cujo nome em fenício, Qart Hadsht, significa “cidade nova”, crescesse rapidamente e assumisse uma posição de destaque entre as cidades fenícias.
Se na Ásia os fenícios seriam conquistados sucessivamente, a partir do século 8 a.C, por babilônicos, persas e mesopotâmicos, Cartago prosperaria independente. E mais tarde, quando Tiro caiu, em 322 a.C., a cidade assumiria de vez a predominância.
Na fase inicial da civilização de Cartago, sua principal arma de desenvolvimento não era bélica, mas o protecionismo comercial, protagonizado por sua diversificada indústria naval. Ninguém construía barcos como os fenícios e, em Cartago, essa indústria chegaria próxima da perfeição. Suas embarcações mercantis mediam entre 20 e 30 metros de comprimento e entre 6 e 7 metros de largura. A proa era normalmente decorada com a escultura de uma cabeça de cavalo. No casco, eram pintados dois olhos, um de cada lado, cujo objetivo místico era permitir ao barco “enxergar” melhores caminhos. Havia uma vela retangular e era orientado por um timão, na verdade um leme situado perto da popa. Cartago mantinha rígido controle sobre seus parceiros comerciais, exigindo exclusividade e fidelidade de seus fornecedores. Dominavam portos e rotas de distribuição e assim estenderam sua influência por todo o norte do continente. Esse controle sobre possessões marítimas é conhecido como talassocracia.
Alguns historiadores acreditam que os hábeis navegantes chegaram até as costas de Moçambique, onde negociaram com os vendedores de ouro das minas do atual Zimbábue. Em 654 a.C., eles fundaram uma colônia em Ibiza, uma das ilhas do arquipélago das Baleares, na Espanha.
Apesar das táticas comerciais, o confronto com outras potências da época tornou-se inevitável. No século 6 a.C., uma série de combates colocou frente a frente duas forças mediterrânicas: os cartagineses e os gregos, maior potência da época. Por volta de 600 a.C., a marinha de Cartago impediu que os gregos estabelecessem uma colônia na região onde hoje fica Marselha, na França. Apesar de derrotada, a frota cartaginesa causou tantas baixas entre os gregos que inviabilizou a fixação de uma cidade na região. Cinqüenta anos depois, o general cartaginês Malco atacou a ilha da Sicília e conseguiu romper o domínio helênico.
Dos poderosos estaleiros cartagineses saíam, nessa época, os mais modernos navios de guerra da Antiguidade. Eles eram 2 ou 3 metros mais estreitos que os cargueiros e eram impulsados por remos. Afinal, não se podia depender dos ventos para alcançar os inimigos. Os mais comuns eram os trirremes, que possuíam uma tripulação de até 180 homens e uns 36 metros de comprimento. Embarcações maiores – as penteras – possuíam 40 metros de comprimento. Estavam dotadas de velas e remos e levavam entre 240 e 300 homens.
As primeiras vitórias importantes de Cartago vieram depois de um pacto com os etruscos, no ano 535 a.C. Juntos, eles derrotaram os gregos na batalha de Alalia, na costa ocidental da Córsega. Os etruscos ficaram com a Itália continental e os cartagineses com as ilhas e o setor ocidental do Mediterrâneo.
Mas nenhuma dessas conquistas seria definitiva e, em 480 a.C., os gregos infligiram uma derrota às tropas cartaginesas situadas na costa norte da Sicília, que só reagiriam em 409 a.C., quando iniciaram uma campanha decisiva pelo controle da região. Em 367 já dominavam a Sicília e, em seguida, invadiram a Sardenha a partir de um tratado com Roma, com a qual mantinham uma política de não-agressão.
No século 4 a.C., Cartago já era uma poderosa república aristocrática, uma espécie de Veneza antiga, onde os cidadãos estavam submetidos às leis de ricos austeros e disciplinados. Existiam dois organismos políticos importantes: a Assembléia do Povo e o Conselho de Anciões, uma espécie de Senado. Nessa época, o filósofo grego Aristóteles chegou a elogiar as instituições políticas cartaginesas. A constituição de Cartago era considerada mista, ou seja, reunia elementos de cada um dos três grandes sistemas políticos da Antiguidade: o monárquico, o aristocrático (ou oligárquico) e o democrático. Existia também uma espécie de tribunal chamado “Conselho dos Cento e Quatro”.
Se não havia paz nas fronteiras marítimas, internamente havia prosperidade e riqueza. No começo do século 3 a.C., o grego Agatocles de Siracusa chegou às portas de Cartago. Diodoro de Sicília (cronista grego do século 1 a.C., autor da Biblioteca Histórica), deixou escrito o que seus compatriotas viram naquele território proibido: “Estava semeado de jardins e pomares de todo tipo, já que muitos rios estavam canalizados e regavam todos os lugares. Apareciam sem interrupção casas de campo edificadas com luxo e pintadas com cal, fato que atestava a riqueza de seus proprietários. Os povoados estavam cheios de tudo o que contribui com os prazeres da vida, posto que os habitantes, em um longo tempo de paz, puderam acumular uma grande quantidade de bens. A terra estava cultivada em parte com vinhedos, em parte com oliveiras, e também era rica em outras árvores frutíferas. Nas outras zonas pastavam nas planícies manadas de bois e rebanhos de ovelhas, e as pradarias próximas estavam repletas de cavalos de pastoreio.
Em outras palavras: aquela zona vivia na opulência, uma vez que os cartagineses mais nobres tinham ali suas possessões e, graças aos seus recursos, podiam dedicar-se ao desfrute dos prazeres da vida”.
A ascensão de Cartago sobre as possessões gregas aumentou a tensão entre cartagineses e romanos pelo controle comercial do Mediterrâneo. Novamente, o cenário para o confronto estava desenhado e em 264 a.C. começam as Guerras Púnicas (“púnico” era a termo latino para designar os fenícios e mais precisamente os cartagineses, já que estes estavam em contato mais próximo com Roma).
Sob a liderança do cônsul Appio Cláudio Cego, os romanos prepararam-se para uma guerra marítima e construíram uma frota novinha, dotada dos mais modernos instrumentos de guerra. Além disso, treinaram tropas especialistas nessa modalidade de combate. Os romanos introduziram inovações, como o “corvo”, uma espécie de ponte móvel que eles lançavam sobre os barcos inimigos para realizar manobras de abordagem. Empregando a nova frota, no ano 260 a.C. Roma obteve uma espetacular vitória em Milazzo, um importante porto na Sicília. Em 247 a.C., os romanos invadiram a ilha, que se transformara numa das principais colônias cartaginesas e era defendida pelo general Amílcar Barca. Os combates se estenderam até 241 a.C., quando os romanos venceram e obrigaram o inimigo a abandonar a Sicília. Como parte da rendição, os cartagineses foram obrigados a aceitar um acordo pelo qual se comprometeram a devolver prisioneiros e a pagar uma grande indenização pelos danos à frota romana.
Atacada em suas possessões pelos romanos, Cartago tinha também problemas internos. Em 238 a.C., soldados mercenários se revoltaram e dominaram a Sardenha, de onde, ajudados pelos romanos, partiram para invadir a vizinha ilha da Córsega. A revolta só seria controlada um ano depois. Mas a época não era só de reveses. Em 229 a.C. Asdrúbal Barca fundou a cidade de Cartagena, na atual Espanha. A península Ibérica seria palco da chamada Segunda Guerra Púnica, a partir do ano 218 a.C. Outro filho de Amílcar, Aníbal, conquistou vastos territórios e suas tropas atravessaram a cordilheira dos Pirineus, a Gália e os Alpes. A campanha em direção ao coração de Roma ficaria célebre pelo uso de elefantes africanos como verdadeiros tanques de guerra. Aliando-se a Felipe V, rei da Macedônia, Aníbal venceu várias batalhas, mas não deteve o poder de Roma. Em 209 a.C. as tropas romanas marchavam sobre Cartagena e em 204 a.C. o general romano Cipião finalmente desembarcou na África e marchou para Cartago.
Aníbal deslocou às pressas suas forças para a outra margem do Mediterrâneo, mas foi derrotado na batalha de Zama. As condições de paz foram desastrosas: Cartago devia renunciar às suas colônias na península Ibérica e na África, destruir sua frota naval e pagar vultosas indenizações.
O período de decadência que se seguiu coincidiu com o predomínio do poder romano em toda a região. Entre a Segunda e a Terceira Guerra Púnica, os romanos conquistaram Macedônia, Grécia, Ásia Menor e Síria. Em 149 a.C. os romanos atacaram Cartago com o pretexto de defender a Numídia, aliada de Roma. O resultado foi que, em 146 a.C., a cidade foi completamente arrasada pelos romanos, que escravizaram cerca de 40 mil homens.
“Os romanos incendiaram a cidade, porém Cartago não foi totalmente destruída naquele ano. Hoje se sabe, graças às escavações, que eles mantiveram algumas edificações e ocuparam a região pelo menos por 100 anos”, afirma Karin Mansel. No ano 29 a.C., Otávio Augusto, que mais tarde se tornaria o primeiro imperador romano, fundou sobre a colina de Byrsa – antiga acrópole púnica – a colônia Iulia Concordia Carthago. Para isso ordenou a nivelação do terreno, um trabalho gigantesco que pode ter levado cerca de 20 anos. Entre três e quatro hectares foram arrasados. Por isso nunca saberemos como era exatamente o coração e a alma daquele grande império, com suas muralhas, palácios dos soberanos e o templo de Eshumúm com sua famosa escadaria de 60 escalões, o último bastião defensivo cartaginês. ‘Tudo isso foi removido junto nos mais de 100 mil metros cúbicos de escombros que foram lançados colina abaixo, acabando com quase todos os vestígios da antiga Cartago fenícia”, diz Karin.
Na versão romana, a colina foi contornada por muros de contenção. Uma parte deles ainda existe e hoje pode ser vista diante do museu de Cartago.

Sacrifício de crianças

Era de noite. Uma grande estátua de bronze do cruel deus Baal Hammón estende suas mãos sobre o fogo crepitante. “Diante da estátua encontram-se os flautistas e os tamborileiros, que produzem um ruído ensurdecedor. O pai e a mãe do bebê estão presentes.
Entregam o bebê a um sacerdote, que avança em direção ao fosso, estrangula a criança e logo coloca a pequena vítima sobre as mãos estendidas da estátua divina, de onde cai sobre a fogueira.
O gentio, enlouquecido pelo barulho e cheiro de carne queimada, se movimenta ao compasso de um ritmo demente que se acelera com o retumbar dos tambores. A oferenda de cada nova vítima aumentará esse frenesi coletivo.” Assim o arqueólogo francês J. Février descreveu, em 1960, como seria o sacrifício de uma criança, em Cartago. Fevrier havia escavado em Tofet de Salambo, dentro da área velha da cidade, um cemitério gigante, onde estimava haver mais de 70 mil corpos de crianças, que ele especulava terem sido vítimas de um ritual de sacrifício. A versão de Fevrier confirmava os relatos bíblicos que atribuíam a moradores de Moab, Canaã, Tiro e Cartago a prática do sacrifício de crianças. “Não darás nenhum de teus filhos para ser sacrificado a Moloc; e não profanarás o nome de teu Deus” (Levítico,18:21).
No entanto, estudando melhor os corpos encontrados em Tofet de Salambo, os cientistas estão chegando a outras conclusões também polêmicas. “É muito provável que houvesse sacrifício de crianças entre os fenícios de Cartago, até porque essa era uma tradição religiosa entre os semitas, incluindo os judeus. Veja a lenda de Abraão”, afirma Carlos Wagner, da Universidade Complutense de Madri, Espanha. “O estado dos ossos e o grande número de corpos só nos mostra que a mortalidade infantil era alta, mas não revelam suas causas”, diz.
Para John Currid, professor de estudos orientais da Universidade de Chicago, Estados Unidos, os corpos enterrados em Tofet de Salambo são muito provavelmente os de crianças abortadas ou simplesmente descartadas após o nascimento. “Isso era bastante comum em sociedades que ainda não dominavam métodos de contracepção e nas quais as crianças eram vistas como propriedades absolutas de seus pais.” O descarte de crianças é comum também em relatos míticos como o de Rômulo e Remo, que teriam fundado Roma, e de Moisés, considerado profeta entre os judeus. “Eliminar crianças era um meio de controle do crescimento populacional. É muito cruel, mas também é muito eficiente”, diz Currid.