quarta-feira, 17 de setembro de 2008

O MITO TIRADENTES




Com algumas exceções, sabe-se quem foi Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes. Mas são também conhecidos Luís Gonzaga das Virgens, João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira e Lucas Dantas do Amorim Torres – lideranças da Conjuração Baiana de 1798?

Da mesma forma que Tiradentes, o soldado Luís Gonzaga das Virgens, o alfaiate João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino dos Santos Lira, nascido escravo e também alfaiate, e Lucas Dantas do Amorim Torres, também soldado, foram executados no dia 8 de novembro de 1799 pelo crime de “lesa-majestade de primeira cabeça” (liderança) por organizarem uma sedição – frustrada pelas forças legalistas – ocorrida em Salvador em meados de 1798.

Esses quatro réus cumpriram a sentença de enforcamento seguido de degola e esquartejamento, além de confisco de bens, tiveram suas casas arrasadas e o chão salgado – “para que ali não mais se edifique”, esclarecia a punição – e no lugar foi erguido padrão com memória da infâmia extensiva a filhos e netos. Suas cabeças foram expostas até apodrecerem no alto de um poste no Campo do Dique do Desterro, uma região então erma, nos arredores da cidade de Salvador, lugar onde haviam se reunidos para agir, depois que o soldado Luís Gonzaga das Virgens foi preso pelas autoridades por elaborar “pasquins sediciosos” com palavras de ordem impregnados pelos ideais revolucionários de 1789 na França, propondo a fundação de uma “República Bahiense”, em “que todos serão iguais, não haverá diferença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade”. As outras partes do corpo, ficaram expostas nas cercanias de suas referidas casas.

Eles tiveram, portanto, destino similar ao do célebre Tiradentes, mártir da Inconfidência Mineira de 1789. Mas por que Tiradentes foi o único dos sediciosos do século XVIII a ser transformado em herói nacional?

Nota-se que acima foi grafado “Conjuração Baiana” e “Inconfidência Mineira”. Apesar de muitas vezes serem tratadas com sinônimos, inconfidência e conjuração têm significações diferentes. Enquanto inconfidência se associa à idéia de traição e infidelidade ao soberano e à metrópole; conjuração reflete melhor a perspectiva do colono, levados a urdir conspirações em defesa de seus interesses.

A figura de Tiradentes era um “artefacto cultural” mais apropriado para a formulação da idéia de nação e de nacionalismo do Brasil – “comunidades imaginadas”, no sentido proposto por Benedict Anderson. Não por acaso, a figura de Tiradentes encerra um mito que ultrapassa os eventos do século XVIII, pois começou a ser construído no século XIX, em um momento de criação da nação e da identidade nacional.

Em 1873, com a publicação da obra História da Conjuração Mineira, Joaquim Norberto de Souza e Silva foi o primeiro autor a estabelecer a associação do herói com Cristo. Com base em documentação então inédita – os autos da devassa e a memória anônima sobre a Inconfidência – Joaquim Norberto admitiu que Tiradentes era figura secundária no movimento, mas estabeleceu uma similaridade entre sua figura e a de Cristo, transformando a forca em local de sacrifício mítico, ao mostrar Tiradentes beijando os pés e as mãos do carrasco, à imitação da cena bíblica.

Contraponto do “delator Judas” – Silvério dos Reis (que no início de 1789, procurou o governador de Minas Gerais, apresentando denúncia contra indivíduos que urdiam um levante contra o governo colonial), a figura ambivalente de Tiradentes – ora considerado falastrão, ora como revolucionário que teve o importante papel de articulador entre as diversas facções do movimento – tornou possível a construção de um dos mais “eficientes” mitos nacionais.

Em 1867, o então presidente da província de Minas Gerais mandou erguer um monumento em sua homenagem em Vila Rica. Mas foi a partir dos conflitos entre monarquistas e republicanos, respectivamente numa luta simbólica entre a figura de D. Pedro I e Tiradentes, que este último ganhou a conotação política de salvador da pátria brasileira.

Foi sobretudo depois da Proclamação da República, que o "mito" Tiradentes recebeu foros de um pregresso republicano que no século XVIII já havia encetado uma luta antimonarquista, rebeldia esta que refletia o caráter plebeu, humilde e de um homem do povo que lutou pela independência do seu país e morreu resignado por ter cumprido um dever cívico. Sintetizando: a redenção de um herói nacional e portador da unidade nacional. Isso porque a República não possuía nenhuma figura capaz de sintetizar e de sustentar simbolicamente o novo regime, pois o 15 de novembro fora o desfecho de um movimento que quase não tinha nenhum contato com as forças e culturas populares, resultado de um golpe militar que precisava de legitimação, conforme esclareceu José Murilo de Carvalho no livro A Formação das Almas.

Instalada a República, por decreto de 1890, o dia 21 de abril foi declarado feriado nacional juntamente com o 15 de novembro. Depois disso, outros governos utilizaram-se deste mito para legitimarem os seus governos junto à "comunidade imaginada", como o de Getúlio Vargas, em 1936 e no final do Estado Novo; e o do Marechal Castelo Branco, com a lei nº 4.897 de 09/12/1965, publicada no Diário da União, de 13/12/1965 (colaboração on-line Prof. Roberto Novaes, Curitiba- PR), declarando ser Tiradentes o "patrono cívico da Nação Brasileira".

No entanto, não nos deixemos levar somente pela construção histórica, porque existiu o réu Joaquim José da Silva Xavier, ele sofreu um processo que durou vinte e nove meses e a sua sentença foi cumprida na íntegra, como atestam os "Autos da Devassa da Inconfidência Mineira". Ou seja, o que sucintamente procuramos fazer aqui foi desvelar a produção de um mito nacional, mas não se esquecendo da existência do acontecimento "Inconfidência Mineira".