segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Índia: O passado do futuro


Virumandi é um pequeno agricultor de 30 anos que vive com sua família nas montanhas de Tamil Nadu, no sul da Índia. Como todos de seu povoado, ele se casou com uma prima de primeiro grau, repetindo um rito milenar. Mal sabia que, graças a essa tradição, estava ajudando a preservar um dos mais valiosos e antigos patrimônios genéticos de que se tem notícia. No ano passado, pesquisadores da Universidade de Madurai detectaram no DNA de Virumandi rastros dos primeiros migrantes da humanidade. Ou seja, de pessoas que viveram há incríveis 70 mil anos e que estavam entre os primeiros Homo sapiens, anteriores mesmo ao surgimento da linguagem, que só apareceu há cerca de 15 mil anos. É fascinante imaginar que milênios depois, apesar de todas as migrações, invasões, guerras e colonizações, traços de um passado tão remoto ainda se encontrem na Índia. Segundo o cineasta francês Jean-Claude Carrière, nesse país de milhares de idiomas, milhares de deuses, aromas, sabores, e de 1,1 bilhão de habitantes, o "passado não é o passado". "Aqui, ele é apenas uma das formas do presente, que o assimila e o alonga", escreveu.
Além do hábito dos moradores de Tamil Nadu de se casarem com seus primos, o país tem uma fortíssima tradição oral e um sentimento extremo de religiosidade. Esses dois aspectos se refletem numa mitologia incontida, que se multiplica constantemente em deuses e cerimônias diferentes e é responsável por manter o passado tão vivo. Os novos não destroem os antigos, mas se acumulam e se misturam. Alguns ritos continuam idênticos ao que sempre foram, geração após geração. Um exemplo são os cânticos religiosos (ou mantras), sons milenares, semelhantes aos dos pássaros, entoados até hoje da mesma maneira
como o faziam os homens antes de saberem falar. Isso tudo em um país que se tornou um dos gigantes da modernidade, pólo tecnológico, com uma economia que cresce mais de 8% ao ano.
Pois no sangue do agricultor contemporâneo Virumandi e no de todos de seu povoado, os pesquisadores encontraram o gene M130, o mesmo que estava na composição genética dos primeiros homens que saíram da África, seguiram a costa do mar da Arábia e foram parar no sul da Índia. Pode-se dizer que todos aqueles que não são africanos têm suas origens nesses primeiros indianos que habitaram o subcontinente, que incluía, além da Índia, a região dos atuais Paquistão e Bangladesh. A fertilidade das terras locais fez com que alguns decidissem ficar, enquanto os demais continuaram migrando e povoando o mundo. 

Os que ficaram organizaram-se. Pesquisas arqueológicas feitas no vale do rio Indo, a partir do século 19, identificaram uma das primeiras civilizações do mundo, maior que as do Egito e da Mesopotâmia juntas, ocupando mais de 1,5 milhão de quilômetros quadrados de território. Indicaram, também, que essa sociedade, a civilização do vale do Indo, tinha uma estrutura bastante desenvolvida e viveu seu ápice no período aproximado entre os anos 3000 e 2000 a.C. As ruínas das cidades de Moenjodaro e Harappa, os principais sítios arqueológicos dessa população antiga, mostram, ainda, que ela era urbana, mercantil e agrícola. Dividida em bairros, cortados por ruas, formando quarteirões geometricamente exatos, Moenjodaro (ou Colina dos Mortos) é conhecida como "cidade moderna da Antiguidade". As casas eram simples, feitas de tijolo e madeira, mas com infra-estrutura sofisticada: cisternas, salas de banho, equipamentos sanitários, andares superiores e inferiores. Havia também edifícios públicos que, de acordo com os estudiosos, devem ter servido a uma administração central, composta principalmente por autoridades religiosas. 

Essa civilização precoce, dirigida por sacerdotes, é o ponto a partir do qual se traçam as raízes do hinduísmo. Foram encontradas figuras femininas de barro que, acredita-se, representavam uma deusa-mãe, maistarde personificada como Kali, divindade assustadora, de identidade imprecisa, que costuma ser associada ao tempo e à morte. Outra escultura desse período é uma figura masculina, com três faces, sentada em posição de ioga e rodeada por quatro animais. É uma das mais antigas representações do deus Shiva, aquele que dança, enquanto faz o mundo se mover e as ilusões se afastarem, símbolo do princípio criativo. Pilares de pedra preta, da mesma época, também foram interpretados como o falo desse deus poderoso. 

A civilização do Indo entrou em declínio a partir da invasão dos ários, ou arianos. Esse povo vivia provavelmente na Ásia Central, no planalto que hoje é o deserto de Gobi, entre o norte da China e o sul da Mongólia. Seus guerreiros eram altos e tinham a pela clara. Penetraram pelo noroeste da Índia, região do Punjab, entre 1500 e 800 a.C. Alguns desses invasores excursionaram para o oeste e se tornaram os antepassados dos gregos, celtas e latinos. Outros ficaram no vale do Indo e dominaram os habitantes locais, que, a essa altura, já eram indianos de pele escura, descendentes daqueles que tinham vindo da África. A civilização do vale do Indo (chamada dravidiana) acabou por força da presença ariana, mas a língua que ela engendrou é falada até hoje, em diversas regiões do sul da Índia. 

A vez dos Vedas 
A invasão ária foi determinante para o início de uma nova civilização: a védica. Ela criou os Vedas, poemas e hinos sagrados, bastante complexos, que trazem as regras, a inspiração e o sentido do hinduísmo. Toda a base do que é a cultura da Índia atual está nos Vedas, cuja autoria é atribuída ao próprio Krishna, encarnação de Vishnu, um dos três deuses mais importantes da religião (ao lado de Brahma e Shiva). Compostos em sânscrito, eles descrevem rituais politeístas e normas sociais, em que se destaca a supremacia dos sacerdotes, ou brâmanes. É lá que está também a divisão da sociedade por castas. "No sistema de castas, a vaca é considerada mais pura que os brâmanes. Não pode ser morta nem ferida e tem passe livre para circular pelas ruas, sem ser incomodada por ninguém", afirma Dwijendra Narayan Jha, professor da História da Universidade de Délhi. O sistema de castas é o calcanhar-de-Aquiles da sociedade indiana e ainda exerce forte influência na divisão de classes do país, embora o Estado moderno lute contra ele por meio de políticas públicas que buscam equiparar os direitos entre os cidadãos. Os escritos antigos dividiam as pessoas de cor (origem do termo casta, em sânscrito), ou seja, os não-brancos ou não-arianos, de acordo com status e distribuição do trabalho. Essa segmentação valia para sempre, o que significa que não era possível haver nenhuma mobilidade social dentro da família. Em tese, a casta de uma pessoa e de todos os seus descendentes já está definida no seu nascimento, porque, do ponto de vista da religião, cada um nasce com um carma que vai precisar cumprir para que sua próxima vida seja mais afortunada. Quem nasce numa casta alta, por exemplo, é porque teve uma vida passada espiritualmente elevada, portanto acumulou um bom carma e foi recompensado nesta vida. 

Por isso, os sacerdotes (brâmanes), situados no ponto mais alto das castas, são protegidos e não devem trabalhar. Sua responsabilidade é dedicar a vida ao cultivo da espiritualidade e à transmissão de seus ensinamentos. Quem está nas castas inferiores é que deve trabalhar por eles. No livro Índia - Um Olhar Amoroso, de 2001, Carrière conta ter esbarrado, nos jardins de Bombaim (atual Mumbai), com homens usando "turbantes magníficos, tendo à sua volta finas hastes metálicas, pedaços de algodão e óleo", representantes da inusitada "casta dos limpadores de orelhas". Mas tentar fugir de seu destino, ou de sua casta,pode ser uma decisão de alto risco. Quem ousa (ou já ousou um dia) tentar melhorar de vida, procurando um emprego melhor ou casando com alguém de casta diferente, por exemplo, pode se tornar um pária, o pior castigo para qualquer indiano. Os párias, tradicionalmente, não tinham direito a nada, eram obrigados a fazer os trabalhos mais degradantes e sequer podiam comprar roupas - precisavam tirar as vestimentas dos cadáveres para usar. Suas casas (ou taperas) eram construídas com objetos encontrados no lixo, como louças quebradas .