sexta-feira, 11 de junho de 2010

Guerra e futebol


Os esportes são parte importante da vida cotidiana na sociedade moderna.  Mobilizando milhões por todo mundo – praticando, assistindo, trabalhando, torcendo e, principalmente, consumindo –, o esporte se faz presente em diversas esferas da vida social. Dentro deste quadro de presença dos esportes na sociedade moderna, é indubitável que o futebol ocupa uma posição de destaque.  Nenhuma outra prática da cultura popular envolve a tantos e desperta tamanho interesse e paixão. 

Tal é a força de identificação nacional do futebol, que este esporte já foi até mesmo considerado o estopim de uma guerra entre El Salvador e Honduras, conhecida como a Guerra do Futebol. Na realidade, entre as verdadeiras causas da guerra está uma antiga disputa em relação à imigração de salvadorenhos para Honduras, a posição privilegiada de El Salvador no Mercado Comum Centro Americano (MCCA) e principalmente por uma reforma agrária hondurenha no início de 1969, que serviria de pretexto para a expulsão de salvadorenhos das terras do país e visava redistribuir suas terras a cidadãos hondurenhos.
   
Em Junho de 1969, na mesma época em que o numero de salvadorenhos fugidos de Honduras aumentava, El Salvador e Honduras disputaram uma vaga nas eliminatórias para a Copa do mundo do México, em 1970. Os meios de comunicação de massa de cada país aumentavam as já existentes tensões, encorajando o ódio entre os cidadãos dos países vizinhos. Em 6 de junho de 1969, a equipe de El Salvador vai a Tegucigalpa, capital hondurenha, para a primeira das duas partidas agendadas entre as seleções. Sofrendo uma enorme pressão da torcida local desde a noite anterior ao jogo, os salvadorenhos não conseguiram segurar o empate e acabaram cedendo a vitória à seleção de Honduras nos últimos minutos do jogo. Honduras 1 a 0.
   
A indignação da população em El Salvador com o resultado da partida – e principalmente com o tratamento dispensado a seus atletas – foi enorme. Gilberto Agostino (2002) cita o caso da adolescente Amélia Bolamos que “revoltada com o tratamento dispensado à sua seleção, [...] matou-se com o revólver do pai logo após o jogo” (p. 192). E logo depois fala de seu funeral, que “marcado por rompantes de nacionalismo e ódio, [...] foi televisionado, sendo acompanhado por um cortejo militar, tornando ainda mais tensa a expectativa da partida de volta” (p. 192).
   
Com tanta tensão envolvendo o confronto de volta em São Salvador, não é de se estranhar que o embate em campo tenha se desdobrado para as ruas da capital. A torcida salvadorenha recebeu os rivais com ainda mais ódio do que sua equipe havia recebido em Honduras, tanto que os visitantes tiveram que se dirigir ao estádio em um veículo blindado (Agostinho, 2002, p. 192). Momentos antes da partida, uma bandeira de Honduras foi queimada e seu hino desrespeitado. Após a vitória por 3 a 0 da seleção local – que levaria a um novo confronto em campo neutro –, a violência tomou conta das ruas. Dezenas de torcedores hondurenhos foram agredidos e até mesmo mortos.

Neste mesmo período, a milícia paramilitar hondurenha “Mancha Brava” foi acusada de cometer atrocidades contra salvadorenhos, o que levou ao aumento do número de emigrantes a retornar à El Salvador. Assim, em 25 de junho, dois dias antes da partida de desempate entre os dois escretes, o governo de El Salvador acusou os hondurenhos de genocídio na ONU (Sack e Suster, 2000, p. 306; Agostino, 2002, p. 193). Os dois países fecharam as fronteiras e mobilizaram as suas tropas, enquanto as duas seleções se encontravam no estádio Asteca, na cidade do México, para o jogo de desempate. Após empate de 2 a 2 no tempo regulamentar, o time de El Salvador garantiu sua vaga na Copa do Mundo com um gol na prorrogação. El Salvador havia vencido o primeiro embate.

Em 14 de julho o exército de El Salvador invadiu Honduras, iniciando uma guerra que durou cinco dias. A Organização dos Estados Americanos (OEA) negociou o cessar fogo que entrou em vigor em 20 de julho, e levou as tropas salvadorenhas a abandonar o território ocupado ainda no início de Agosto. Apesar de curta, a guerra deixou aproximadamente dois mil mortos, a maioria composta por civis. No ano seguinte El Salvador disputou a Copa do Mundo, no México, e não passou da primeira etapa, tendo disputado três partidas, sofrendo nove gols e não marcando nenhum.

É de comum entendimento que o futebol não foi o elemento causador da guerra entre Honduras e El Salvador. No entanto, pode-se inquirir quanto ao papel desempenhado pelo esporte na exarcebação das relações entre os dois países. Incitadas pela mídia através dos meios de comunicação de massa, as tensões que já projetavam as duas nações em direção ao conflito foram inflamadas pela idolatria ao esporte. Neste caso, pode-se entender melhor o papel desempenhado pelo futebol através de seu caráter simbólico. Como notou Eric Hobsbawn (2004),
o esporte internacional tornou-se [...] uma expressão de luta nacional, com esportistas representando seus Estados ou nações, expressões fundamentais de suas comunidades imaginadas. [...] A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com um nome. (p. 171).

A força do futebol como um fator de identificação de um indivíduo com sua pátria pode ser vista com facilidade em grandes eventos esportivos, como a Copa do Mundo de futebol masculino da FIFA. A cada quatro anos, o país anfitrião do evento – um dos maiores eventos internacionais da atualidade, ao lado dos Jogos Olímpicos – recebe milhares de pessoas de diversas partes do mundo. As ruas tornam-se coloridas com torcedores vestindo as cores de seu país, agitando suas bandeiras e cantando hinos e canções. Tal festival de nacionalismos é único. Nem mesmo os jogos olímpicos causam tamanha mobilização e despertam uma paixão tão grande entre o indivíduo e seu país. Mais do que qualquer outro esporte, o futebol carrega consigo grande capital simbólico de representação da nação.
É justamente este caráter simbólico do futebol que permite que este esporte desperte tamanha comoção entre movimentos nacionalistas, separatistas ou não, principalmente na Europa. Estes movimentos regionais que buscam a autonomia política costumam ver no esporte – e em especial no futebol – um meio de legitimação de suas aspirações nacionais.